A FRONTEIRA DESGUARNECIDA

Boa parte da boa poesia em língua inglesa surgida durante o século XX não está composta em versos, mas sim dispersa pelos livros de autores que são “poetas da prosa” — como Joyce, Lowry, Faulkner, Kerouac, Shepard — e que levam as formas expressivas, libertando-as dos cânones, ao máximo desigual possível. Em geral os autores dessa estirpe começam fazendo versos, ou os mantêm como um subproduto de sua usina febril, mas logo eles se dão conta de que a exploração do inconsciente que tentam já não pode caber nas formas fixas.

Cada qual a seu modo, Cortázar e Borges, a Clarice de Laços de família , o Lúcio Cardoso do Diário , o Marcos Konder Reis de Praia brava, Campo de flechas e tantos outros solitários livros, numerosos simbolistas e futuristas das tradições mais diversas e todo o Cornélio Penna de apenas quatro romances são também desses “poetas da prosa” que estão sempre à procura de inventar soluções na produção de textos, movendo-se entre o sentir e o dizer de um modo novo em sua época e para sempre essencialmente poético.

Alberto Pucheu, tendo estreado em versos livres de fatura precisa, com Na cidade aberta (1993) e Escritos da freqüentação (1995), parece encontrar-se agora, com os blocos compactos de letras deste A fronteira desguarnecida — “A boca aprendendo, forçada, o contorcionismo das dores soletradas” — na linha de frente dessa experimentação sem limites.

O autor alude, veja-se, ao “metabolismo suscetível de quem fala,” a “Algumas vozes [que] emprestam músculos para que se toque com o corpo o mar,” à “convivência no estampido da memória,” a um “toque de carne,” ao “vôo inesperado da sintaxe e do sentimento.” Todas, expressões que apontam para a presença de um organismo sensível que se prolonga pela urbe — seus acasos e esbarros — e é multidão da espécie a se manifestar organicamente.

A função do poeta é encontrar sua fala, a única que corresponde à sua experiência vivida, a única que diz o que seus nervos pensam, não por exibicionismo de originalidade, mas por tensão dorida — por necessidade de ser autêntico. Se ele o não for, nada terá tido a menor importância, porque nada o transformará por dentro. Sendo a poesia o reino da liberdade, e os seres tão fascinantes em sua variegada beleza, outros encontrarão fala própria por caminhos diversos, pois só uma obrigação se impõe a todos: a de que a escolha seja feita em silêncio, lá onde, no coração da matéria, a voz da consciência se inscreve por linhas tortas e brumas.

Ainda moço e ao longo de três livros, Alberto Pucheu já se transformou o bastante para encontrar sua fala. Porque, entre outras coisas, só um poeta que se domina e a seus meios poderia terminar desta forma um “Poema em vão”: “Se vós pudésseis me escutar, ó santos, por dentro dos adornos das paredes, pediria a salvação. Não a minha. Não a do amor. Nem a da humanidade: fazei com que os rinocerontes vivam (com sua maravilhosa estranheza) ainda depois do mundo acabar.”

Leonardo Fróes

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