ESCRITOS DA FREQUENTAÇÃO

Se é verdade que grandes poetas reafirmam sua força pela retomada e desenvolvimento de certas metáforas ou símbolos, que lhe marcaram desde cedo o estilo e prosseguiram pela existência afora — Borges, com seus tigres e espadas, Drummond com sua mítica Minas, Cabral com suas facas e canaviais, por exemplo —, dando a impressão de que no fundo escrevem e reescrevem o mesmo poema, mais surpreendente este fato se torna ao observarmos num jovem poeta a retomada obstinada de certos temas, no início mesmo de sua carreira literária. Tal é o caso, entre nós, de Alberto Pucheu.

Neste novo livro, Escritos da freqüentação, Pucheu reescreve versos, estrofes e poemas de seu trabalho inicial, Na cidade aberta (Rio, UERJ, 1993). Se aí o poeta se abria tematicamente em busca da própria poesia (“caem as palavras/ se não bastassem as folhas/ e os pingos da chuva”), do mar e seus significados (“o pescador sabe/ de cor/ o alfabeto das areias”), dos mitos, ciência e aventura, no segundo, o autor retomará temas que marcaram já o primeiro trabalho: os temas da cidade eda linguagem (poética). E esta retomada, diga-se logo, não será fruto de uma possível falta de originalidade: ao contrário, resultará de uma reflexão artística que visará enriquecer, através do aprofundamento e variações, os símbolos que se apresentaram inicialmente.

Na cidade aberta , Pucheu escreve que “a sinalização indica,/ por detrás/ da maresia: CIDADE:/ lugar que acolhe/ asfalto e sol,/ ondas e pontes —/ onde memória é a palavra”. Pois bem. Em Escritos da freqüentação , o poeta retoma os temas da cidade e da palavra para fundi-los, ampliando as bases de um símbolo anterior: a cidade-língua, cujas fundações se dão ao nível do alfabeto (“começo os alicerces da/ cidade/ com apenas seis letras”), para em seguida transformar-se em cidade-escrita, cujas “linhas/ mapeiam espaços/ delineiam ruas e deixam/ baldios” e por fim tornar-se em cidade-linguagem, em cujo centro encontra-se o homem, ou seja, o poeta capaz de “converter a convenção/ em invenção”, projetando-se no espaço da página e do tempo.

Como estratégia estilística, Pucheu também retoma os “fragmentos/ nas avenidas” do primeiro livro para lançar agora nas páginas lascas, estilhaços, fragmentos de frases e poemas, como a compor isomorficamente o próprio cenário da matéria poética e urbana misturadas, pois “qualquer escrita é permanecer/ em movimento” e a cidade é esta “massa pluriforme: elasticidades/ encolhimentos/ seguindo arranjos”.

A estrutura de Escritos da freqüentação entremostra um projeto muito bem pensado, cuja execução não se revela menos rigorosa. Isto nos faz lembrar Heidegger, para quem a poesia é um projeto poético pensante. E juntando o filósofo alemão ao estilo fragmentado destes Escritos , não podemos deixar de nos referir a Heráclito, como sendo talvez o modelo poético-filosófico que tenha inspirado Alberto Pucheu. Não por acaso este último lembra que “Dois mil e quinhentos anos me aproximam deste instante”. Entenda-se: do instante heraclitiano. Do instante que põe tudo em movimento hic et nunc.

Desejamos, assim, assinalar a vertente filosófica do nosso poeta, perceptível através da estrutura sentenciosa de sua escrita e o conteúdo de verdade que alguns fragmentos alcançam. Alguns exemplos: “A perfeição de um livro não conhece evolução”; “o pensamento quando expulsa as palavras é seqüestrado por elas”; “Como vivem sem o solavanco do espanto”; “E disse-me, pouco antes de morrer: com poetas, menosprezá-los mediante o pensamento; com pensadores, menosprezá-los mediante a poesia”. Perfeito.

Estamos, portanto, diante de um poeta-filósofo ou de um filósofo-poeta (aqui a ordem dos fatores não altera o resultado) que, com seu novo trabalho, já não é mais uma potência, uma promessa real, como assinalou Moriconi Jr., ao prefaciar seu primeiro livro. Neste segundo, posso assegurar que ele já se afirma como ato, em plena realização poética.

ADRIANO ESPÍNOLA

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