A FRONTEIRA DESGUARNECIDA

(revista "Poesia Sempre", ano 6, número 9, março de 1998)

O poeta Alberto Pucheu acaba de encontrar a própria casa e o endereço de suas visitações. Já lhe apreciava os livros anteriores, cheios de uma inteligência sutil, imagética, varada por um conceitualismo de raízes pré-socráticas, sub specie nietzschiana. Assim ocorre em Na cidade aberta ou em seu belo Escritos da freqüentação. Todos prometiam Alberto Pucheu. Neles havia uma vocação absoluta, in fieri. Eram livros de uma delicadeza irreprochável. Como Sandro Penna. Como Reiner Kunze. Mas não era todo o poeta Alberto Pucheu. Era uma espera pirandelliana, sentida em profundidade e abismo. Poeta perseguindo o poeta. Vocação em brasa. Laivos de poesia. E a busca da forma, pressentida, e mais alta, e mais forte, e mais radical. Penso nas formas derradeiras de Miguelângelo, lutando, inacabadas, contra o mármore, com uma força impressionadora. Como que todo o percurso de Pucheu tendesse para esta Fronteira desguarnecida, em que o poeta encontrou a poesia, onde se encerra, temporariamente, a busca pirandelliana da forma, e que constitui a velha e grandiosa parusia de Plotino e de Platão. A forma que brilha com todos os seus raios. E aquele sentido poderoso da unidade. Alberto Pucheu parece torturado pelo fogo da unidade. Por isso, a fronteira. Por isso, a casa.

Como que Pucheu estivesse em paz. Redimido parcialmente de si mesmo. Na poesia, como a entende Cansino Assens, em sua forma absoluta e radical. Toda construída numa forte base intertextual, de remissões, alusões, subtrações, neologismos, arcaísmos, urbanismos, de que depende a força fundamental de sua cidade literária, como naquele poema de Khlebnikov: cidade feita de vidro, aço e palavra.

Portanto, qualquer tentativa de separar o último livro de Pucheu dos dois anteriores há de ferir fundamentalmente o seu princípio temático recorrente, que é a paisagem urbana, e seus tentáculos verherenianos, e seus escombros benjaminianos, e todos os ismos poder-se-iam convocar livremente aqui. Trata-se de uma poesia civil (a poesia da urbs, a poesia da polis), na acepção de um Scotellaro, em que todas as questões de fundo ideológico não bastam a si mesmas, pois que devem ser concentradas dentro de uma tradição de grave e atenta literariedade, para dizer como os russos, de grave e atenta literaturnost. Pucheu encontra-se ao longo e ao largo de todo e qualquer tipo de redução. Ergo: poeta civil. Grave, mas sem gravame. Incisivo, mas não redutivo. Tome-se o exemplo de seu belo poema dedicado a Canudos, e ter-se-á a medida do que estamos a dizer

Seria inútil rastrear a rede de alusões e remissões com as quais Pucheu constrói suas ruas e bairros e casas, de sua Fronteira desguarnecida, de sua rua de mão única (Einbahntstrasse), que pode ser medida de uma ruína para outra ruína, como querem Manoel de Barros e Walter Benjamin. Mas confesso não ter qualquer interesse em rastrear uma rede evidentíssima em si mesma, além de Benjamin e Manoel de Barros, fundadora de uma genealogia em que Alberto se vê profundamente envolvido, longe de posturas epigonais de fundo concretista ou cabralino. Pucheu tem coisas a dizer. E quer dizer tudo com as cordas de sua própria lira. Não anda em busca de legitimações superficiais, chancelas vanguardeiras. Alberto tem orgulho (orgulho de artista) de todos os riscos que sabe correr para assegurar-lhe a independência, que o salva permanentemente de si mesmo.

E para finalizar essa tentativa de ensaio, gostava de terminar com uma observação algo extemporânea: Alberto Pucheu conhece a literatura brasileira. Ora, tal afirmação poderia parecer descabida, à primeira vista. Mas não é esse o caso. Infelizmente muitos poetas jovens desprezam o Brasil. Ou, quando muito, referem-se a um quadro de referênciais já preparados, que lança ao limbo boa parte da alta tradição poética brasileira, que vai de um Dante Milano a um Abgar Renault, do imenso Castro Alves a Drummond. Alberto Pucheu conhece a literatura brasileira. E para um poeta jovem (tanto como este ensaísta desvairado) conhecer a literatura brasileira pode parecer inútil! Mas sabemos, contudo, Alberto e este seu leitor, que a casa, o endereço e a cidade só podem ser habitados se realmente formos habitados por eles. Afinal, não habitamos as cidades. São as cidades que nos habitam. E o livro de Pucheu me habitou. Tornei-me cidadão desta Fronteira desguarnecida. Enquanto houver gentes e coisas desguarnecidas.

MARCO LUCCHESI

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