a ferida aberta do pensamento
[Sobre A Fronteira Desguarnecida]

Nilson Oliveira

Para que serve então a vida-escrita?
— É um instrumento, para ver, tentar abrir, dobrar a dobra, insistindo.
[Vicente Franz Cecim]

“Num livro, uma frase - uma ferida”. “Sem uma ferida, não há frase, não há livro”. “Sem ferida não há leitor”. Alberto Pucheu nos traz, em A Fronteira Desguarnecida, essas questões; e a partir delas, na relação livro-leitor, faz surgir outras, tais como: o que quer o livro? O que quer a escrita? O que quer o leitor? Questões que Pucheu movimenta nos fazendo pensar. Essa é uma das linhas visíveis em sua escrita, fazer pensar. Atravessar o deserto da literatura é migrar para a latitude do pensamento, esse é o seu percurso; para essas bandas nos arrasta. A ferida de Pucheu e a dilatação da escrita, pois só dilatada, a escrita engendra-se como frase, mas aí um risco: a ferida dilatada se fortalece, logo, migra; quer tomar o corpo e compor uma arquitetura de pensamento, fazendo dele, o corpo, uma matéria que abrevie o tempo: a obra. Em A Fronteira Desguarnecida, a obra é uma abertura, por ela Pucheu faz cintilar o horizonte da sua escrita numa reunião de livros que compõem um verdadeiro arquipélago, numa superfície diversa, por onde a escrita deságua rompendo o limiar, fraturando a fronteira da harmonia, nos trazendo o inusitado: Escritos para o lado de dentro das lentes dos óculos e Performance para um corpo concentrado em sua voz, compondo uma espécie de rizoma em que os escritos reunidos formam um movimento, uma constelação na qual as coisas se dobram em um jogo de diferenças, onde cada livro funciona como uma carta, e cada carta traz uma questão. Mas todas as questões não formam uma unidade, e sim uma multiplicidade, um aberto, um inacabado, pois como nos diz Deleuze: A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como disse e fez Gombrowicz. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se; deixando evidente no movimento da obra: rastros de duração, vestígios de tempo, zonas de permanência; fazendo do livro um imenso inédito, pois o movimento da leitura, a leitura da obra nos possibilita uma viagem ao livro que diante dos nossos olhos se abre, como um véu que abandona um rosto, proporcionando aos olhos o susto de uma beleza outra. Pois ler é também migrar, percorrer o indizível. Cruzar, como um tuaregue, fronteiras desguarnecidas e avançar para distâncias cujo limite nunca se alcança. Assim faz Pucheu: atravessa limites, pois como vemos em seu percurso, de livro a livro, a intensa procura pela palavra, o combate pelo pensamento, a amizade por autores do pensamento e da escrita, gerando uma proximidade possível, uma forma de companhia na qual os diálogos cintilam como breves lampejos, fazendo das referências uma paixão pela escrita. Escrever é mergulhar no fundo dessas experiências, é saber atravessar as entranhas do mundo e cada pele; é saber encontrar as palavras de que se precisa. O fio, que ao fiar, desfia, e desafia; é saber desafiar a voz, o corpo, as palavras, mas, sobretudo, o que pode o silêncio; é experimentar o movimento do corpo/ corpo de palavras/ corpo de voz/ voz sem corpo/ uma voz/ incerta/ e sem direção. Essas experiências nos conduzem a muito longe, ao limite da voz, talvez para o seu fora, nela numa voz se atinge/ um inatingível, ondepouco há, mas a um só tempo, onde tudo começa, porque é silêncio. Aqui Pucheu encontra, pelos laços do afeto, Agamben, para o qual: o pensamento naufraga naquilo que se dá a pensar: o ter-lugar — inencontrável — da linguagem. Esse é a sua força, o se dar a pensar, pois tal como Agamben, sabe Pucheu que escrever é rondar os abismos do pensamento, ser fiel à exigência, ao seu movimento, é mergulhar no inencontrável das suas dobras. O poeta não vacila diante desta exigência e declina com todo o seu corpo, sua voz, seu silêncio; não resiste, não exita, tal com Blanchot e Agamben, regozija-se em um quase júbilo, percorre o limite da escrita, para ver o que há além dela. A poesia de Alberto Pucheu alcançou um horizonte no qual as coisas movimentam-se atravessadas por esse pensamento; nele, tudo é móvel, como coisas vivas, tangenciadas pelo tempo, mas fora das coisas presumíveis, pois não é o sujeito, suas preocupações, seus desígnios, suas atividades que falam; quem fala é uma linguagem outra; uma linguagem crua, desenhada pela força do acontecimento. Mas o acontecimento fora de todo presente, sempre por vir, nunca acabado, sempre por fazer, seja em obra, pensamento ou o que for. A linguagem, nessa esfera, não mais está disponível para designar algo ou dar voz a alguém, pois vem de uma inantecipável matéria nervosa que tudo ronda e tudo atravessa, sua força fratura o muro do significante e alcança o outro lado da fronteira.

Vicente Franz Cecim, Ó Serdespanto

Alberto Pucheu, Escritos para o lado de dentro da lente dos óculos

Gilles Deleuze, Critica e Clinica

Alberto Pucheu, Performance para um corpo concentrado em sua voz

Giorgio Agamben, A Linguagem e a Morte

Alberto Pucheu, Performance para um corpo concentrado em sua voz

Nilson Oliveira, é editor da revista Polichinello,autor de
A Outra Morte de Haroldo Maranhão (edições IAP, 2006) nilson_olliveira@yahoo.com.br

 

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