A PARADINHA NO PÊNALTI

Livro de ensaios do brasileiro Alberto Pucheu dialoga com a obra do filósofo italiano Giorgio Agamben

 

(publicada no caderno Ideias, do Jornal do Brasil, em 3 de julho de 2010, p.3)
  Luiz Guilherme Barbosa

 

Pode ser que você ainda não tenha ouvido falar em Giorgio Agamben. Pode ser também que esteja cansado de ouvi-lo. De um jeito ou de outro, o livro que o poeta e professor de teoria literária Alberto Pucheu acaba de publicar pela editora carioca Azougue, Giorgio Agamben: Poesia, Filosofia, Crítica , propõe uma interpretação da obra do filósofo italiano que pode funcionar tanto como mapa para iniciantes quanto como a sinalização de outros caminhos para os que já a conhecem. Esta aparente contradição guarda, na verdade, o projeto mais fundamental deste livro.

É que a questão com que se debatem os quatro ensaios de Alberto Pucheu é a da relação entre poesia e filosofia (no pensamento de Agamben). Os parênteses justificam-se não por um desvio de atenção à obra do filósofo, mas, por revelarem a tentativa de falar com ela sobre o tema. O inevitável outro da obra – o leitor de Agamben – convive com o saber para o qual, de obra a obra, de livro a leitor, apenas o que se pode transmitir é o movimento para a criação, “o único verdadeiramente transmissível de nossa cultura”, nas palavras de Pucheu.

Por isso, aquilo que mais parece ter chamado a atenção de Roberto Machado, que escreve a orelha, pode ser aplicado tanto ao autor quanto ao filósofo estudado: a “beleza da escrita”, “leve, livre e inventiva”. A necessidade desta escrita, Alberto Pucheu encontra nas leituras que Giorgio Agamben desenvolve tanto da crítica de arte quanto dos institutos do poema, temas através dos quais sua obra é menos conhecida.

No campo da crítica de arte, interessa a Alberto Pucheu o modo como Agamben articula arte e crítica. Após o diagnóstico de uma Estética que, mesmo em configuração moderna, se fazia fundamentalmente como não-arte, o filósofo italiano propõe um modo descriativo para a crítica, uma “dimensão experimental” que, para Pucheu, “oferece uma vigorosa alternativa à compreensão de uma tradição filosófica que entende na criação a passagem do não-ser ao ser”. Logo se percebe que o livro propõe a interpretação do lugar da arte e da crítica hoje. Ele o faz de maneira ao mesmo tempo incisiva, como manifestação do sintoma e do curativo, e livre, como colocação de uma alternativa, em artigo indefinido, o que é raro em livros de interpretação de paradigmas históricos da arte.

Outro movimento teórico com o qual Alberto Pucheu acompanha a obra de Giorgio Agamben são os conceitos para o poema. Acompanhando a tradição teórica da literatura que, pelo século XX, esteve às voltas com a literariedade do ponto de vista da linguística, Agamben procura um conceito que defina o verso em sua persistência após as experiências de vanguarda que desejavam extrapolá-lo. Comparecem na argumentação de Pucheu as ideias de Ezra Pound, a partir das quais o Concretismo criou uma das mais sólidas tradições de leitura do poema no Brasil. A capa do livro, perfil do filósofo em vermelho sobre fundo branco, cita a do livro de traduções de Maiakóvski pelos irmãos Campos e por Boris Schnaiderman: a tradução como ensaio de lá corresponde aqui ao ensaio como tradução. Ambas as publicações trazem um caráter interventivo nas questões prementes do tempo e a afirmação da arte, como tradução ou como ensaio.

A elevação do enjambement , aquela continuidade sintática de uma frase no verso seguinte, à imagem mais fundamental do poema, como faz Agamben, e sua releitura no contexto da crítica e da poesia brasileiras demonstram o lugar múltiplo e preciso deste livro. Ele conversa com filósofos, críticos e poetas não por um caráter dispersivo, mas, ao contrário, por uma intensidade que só compreende o poético, o crítico e o filosófico reciprocamente.

Há diversas passagens que juntam aquela “beleza da escrita” referida e as argumentações conceituais, como a da explicação do enjambement através da paradinha do pênalti em um jogo de futebol. O momento de interrupção de um verso que anuncia a continuidade da frase é análogo à suspensão momentânea da corrida para o chute em gol.

O leitor, ao mesmo tempo goleiro e torcedor do time adversário, também se surpreende com os momentos em que a prosa de Pucheu gira em torno de si mesma, transformando-se em algo que experimentamos como poema: “que não seja desde o lembrado, mas de dentro do esquecimento, de dentro da própria latência do pensamento, de dentro de seu começo, de dentro de seu não dito, de dentro de seu não exposto, de dentro de sua insuficiência, de dentro de sua incapacidade, de dentro de seu leito de nascimento e morte, de dentro da ausência de qualquer rosto, de dentro da página ou tela em branco”.

As argumentações rigorosas, em conversa com a melhor tradição da filosofia e da poesia, e uma escrita surpreendente compensam a ausência da minibiografia do autor e das folhas de guarda nesta edição. Além do mais, lembrando uma formulação do autor, ao encontrarmos um livro assim tão desguarnecido em suas fronteiras, ficamos felizes quando, ao final da leitura, somos levados para nossa página em branco.

 

Giorgio Agamben: Poesia, Filosofia, Crítica

Alberto Pucheu

Azougue/FAPERJ

168 páginas. R$ 32

 

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