MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANO

           A poesia moderna cultuada no centro do poder lírico é a das ruínas de linguagem, em que as palavras funcionam como pedras soltas que pouca capacidade têm de comunicar. Renunciando a seu poder de significação, ela se fez insignificante, em um hermetismo que anula o mundo ao seu redor. São textos que nada dizem além da auto-referencialidade da linguagem.
Para um poeta contemporâneo que não queira o retorno às fontes clássicas do lirismo e que também não se reconheça nesta abstenção de sentido, resta o difícil caminho de salvar como literatura as linguagens em circulação tumultuada no agora. É isso que faz de Alberto Pucheu um dos poetas mais originais e intensos do Brasil.
Da lição modernista, Pucheu reteve a estratégia de retirar poesia de todo e qualquer processo de comunicação. Deixando a estrada segura do lirismo, ele envereda pelos atalhos contemporâneos da língua falada e escrita pelos mais diversos atores. Escutador do outro, é com as inúmeras e espúrias vozes que ele constrói seus textos.
Temos aqui uma poesia que se apropria das ferramentas da crônica – e isto explica o título do livro – para penetrar na linguagem viva de uma cidade, o Rio de Janeiro, marcada pelo convívio (muitas vezes forçado) entre classes. Tudo entra nesta poesia, numa espécie de sujeira social que contamina (e limpa) o idioma lírico.
Os poemas que o leitor vai encontrar aqui se comunicam com a crônica não só pela linguagem prosaica, mas também pela estratégia de composição. O poeta (que pode aparecer na forma de um eu ou de um ele) se deixa povoar por todas as manifestações de discurso, da fala dos surfistas à carta de um assassino, do que dizem as pessoas no trem aos e-mails dos amigos, para montar, como se fosse uma instalação de palavras, os seus poemas. A este procedimento ele dá o nome de arranjos.
Esta maneira atenta e artística de potencializar os vários ruídos urbanos convive com as leituras filosóficas que o poeta faz em seus momentos de isolamento, criando uma sobreposição desses dois universos, os das experiências cotidianas com as linguagens em estado de crônica e os grandes textos universais.
É deste contato do popular e do erudito que vem a grande força expressiva de um livro que traz uma energia de linguagem tão acentuada que torna os temas mais banais em extensos e intensos discursos líricos.
Neste projeto poético, o ancestral de Pucheu talvez seja Walt Whitman ou um Álvaro de Campos, pois há um idêntico desejo de não recuar diante do contemporâneo. Sua poesia não nasce dos contratos líricos, mas de uma consciência do poder narrativo do poético, aberto às potencialidades da sugestão. São poemas com um sopro épico, tratando da matéria – linguística e existencial – do tempo presente de uma maneira erótica.
Entre as várias temáticas, sobressai no livro a questão amorosa. No poema-síntese que é "O livro de hoje do amor", há a encenação de uma vida conjugal lírica e devassa, uma versão do amor em tempos de oferta fácil de sexo. Mas há também a presença de vozes múltiplas que contam o amor sem nenhum tipo de falseamento.
“Mais cotidiano que o chamado cotidiano” é a celebração dionisíaca da existência numa cidade-linguagem em que as vozes-pessoas se misturam.

Miguel Sanches Neto

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