Apresentação ou: quando o escrever move
Para entrar nestes tão ardorosos ensaios de Alberto Pucheu é preciso ter em mente haver aqui uma escolha e uma decisão radicais de mover-se com vista a construir, para além de um projeto e de um programa, uma obra de escrita da Crítica que tenha por norte dois grandes signos: a simpatia (o afetuoso aproximar-se do que seja da ordem do afirmativo) e a intensidade (o árduo operar, dando-se com todo o corpo). Precisamos, diz Alberto Pucheu, para lidarmos com o calor da literatura – nome possível para diversas e potentes modelagens discursivas – conhecer o ar, pôr em movimento os músculos, abrir-nos ao trabalho de tornarmo-nos firmes, leves, flexíveis e, portanto, senhores das articulações, dos cruzamentos, dos embates, das descosturas e das ligas, das sabedorias provenientes das idas sem temor às artes fabulosas do escrever, saltando por sobre fechamentos e fórmulas empobrecedoras, inválidas se diante de processos escripturais ricos e complexos que em enérgicos fazeres do pensamento-em-letra se conjugam, bem fora das divisões miúdas de territórios e gêneros textuais. Brinda-se pelas páginas o ato, o ato-escrever, quando por tal atitude se unem ao pensar e ao expor, audácia, radiância, agudeza, entrega. Realiza-se, assim, nos incontáveis lugares do livro, o esplêndido vigor de uma escrita nobre a atingir as alturas – incluindo-se as que envolvem os inumeráveis níveis da terra – do clássico (trágico e épico a um só instante) e do extremo e contemporâneo modo de assinalar o raro nas coisas raras de que se aproxima e trata. Faz-se da pulsão do interpretar (do juntar-se às obras, tocá-las, revê-las, desdobrá-las, absorver-lhes e expandir-lhes os ânimos) uma espécie nova e igualmente rara de arguto e festejante canto. Canto dirigido ao amor, ao incomensurável amor à letra, ao operar da letra e, especialmente, da letra capaz de congregar múltiplos tons, acentuando o valor do entre, do inconcluso, do indecidível, do por-fazer, do que contenha, em campos vários, matérias recolhidas de solos muitos. Neste litoral – o da littera em teias miscigenadas – revela o livro, sua letra, a habilidade impressionante em acolher e manusear, nos textos avocados, ruídos, tensões, ritmias, acompanhando os meios que permitem hibridar, mesclar, amalgamar, recompor. Logo, sinais e verbos das grandes óperas, isto é, suas sábias criações de indiscernibilidades inteiramente impossíveis de capturar em sistemas classificatórios, dicotômicos e duros. Traçam-se, pois, as linhas, em grande cuidado feitas, do encontro entre quem está a escrever e os tantos amantes e realizadores de semelhante arte, neste banquete – o livro – reunidos, para (convidados estamos para a festa do indagar, do propor, do seguir em êxtase) deliciar-nos com a amplitude de saberes sofisticados, atuantes e intensivos, conforme vocábulo a grifar o livro inteiro. Convocam-se palhetas nutridas de insuspeitas cores, a fim de, com elas, ressaltar o turbilhão de sentimentos por que seremos atingidos quando no ambiente inigualável que a densidade deste livro cria. Inigualável tanto pela luz preciosa e inquieta que oferece, quanto pelas necessárias zonas escuras e cheias de surpresas e achados. Isto por ser, o livro ensina, próprio do poético (onde aconteça) abrigar, não apenas iluminações, mas também cegueira, ignorância saudável, dissonâncias, lugares cerrados, novas passagens a exigirem o fabrico de outras e tantas lentes. Alberto Pucheu auxilia-nos a lapidá-las, a refazê-las, a conquistá-las, propiciando que se alargue a percepção, oferecendo-nos, com aquele adorável jeito de aquecer os vocábulos, leituras precisas, eruditas, únicas, repletas de nuanças, de portas e portas, de inteligências críticas, como as que se alumbram no momento em que se põe a ver nomes-obras como Machado, Guimarães, Jorge de Lima. E: Nietzsche. E: Platão. As faces monumentais dos efeitos poético-filosóficos de seus constructos plástico-verbais, sob qualquer hipótese, inclassificáveis. Chegam-nos tais nomes-obras, de modo avassalador, por meio da tecelagem de Alberto Pucheu. As redes dos nomes próprios aí são tecidas, destecidas, tecidas. Escritas de tal amplitude não se bastam com o declarar o amor; assim, realizam o esforço persistente – algo como o do boxe – de expandir dos afetos o pulsar, as batidas, os volumes, os declives, as táticas, exprimindo e compartilhando as glórias do entusiasmo, desse estado divino que reconhece o valer e o continuar, e diz: sim – sim. Por intermédio da alegria – a cada passo ei-la no livro –, vê-se haver vida forte nas frases sem freios, rápidas e acionadas pelos cálculos formais de Alberto Pucheu. Nelas, sangue circulando. Respira-se, a pele responde, outros sins às emoções constantes do ler conduzem-nos a curvas, retornos, quedas, silêncios; sim ao querer e ao prosseguir. Para tanto, recorre o livro a fibras corpóreas, declarando haver na escrita gestos e gestos a irem às distâncias. E braços e braços a levarem os textos, as obras, os leitores a locais onde muito dificilmente se poderia ingressar. Daí surgir, ao ler e ao escrever, a salgada e definitiva água do suor. O suor confirma os devires, o dedicar-se, a beleza do ter feito, do estar a compor. Assim, manifestam-se os compromissos da arte (qual feição tenha) com ela, a vida – a força maior. E aquele dicionário afetivo que detecta nos poemas de Caio Meira constitui também, junto a outros que formula, a graça pujante da teoria-poema-drama-filosofia-prosa com que Alberto Pucheu, em ágil bailado, nos envolve. Uma prática da velocidade, inscrita nos tons, na beleza do que aparece do súbito, em relâmpagos, nos bombardeios das fixidades, nas apaixonadas sintaxes, nos estados de escritura feitos pelo tremor do toque. Uma arte-escrita-poética-pensante põe-se a montar-se aos olhos nossos, também vívidos, surpresos, aprendizes, encantados. Migra seu deixar-se imantar para quem lê, para quem segura agora o livro e percebe, na exata leitura dos textos de Montaigne ou dos de Agamben, ou nos elípticos insights sobre Emily Dickinson, Clarice Lispector, Arthur Bispo do Rosário, nesses e em mais, a presença daquilo que no livro se alastra: ‘um combate corporal contra a tristeza’. Como o Dionísio que os inspira, os escritos dançam. Sabem do vigor do viver, performatizam-se, não recuam face ao poder do acaso. Põem-se em júbilo. Júbilo pelo acontecimento-já, pelo acontecimento-a-vir. Oferecem os textos mais e mais poros, executam, transpiram. E não se afastam do que desejam por força de terem, por vezes, de interromper. Arrojam-se os escritos de Alberto Pucheu, assim como aqueles com que lida, os de seus seletos pares. Dentre os pares, a presença de Nietzsche a guiar e a ser visto. Sobre Nietzsche, longo poema forma-se. Poema sobre as faces, sobre os apelidos de Nietzsche. Um novo glossário de termos para pintar e colorir a fartura dos nomes, a largura das obras, as tonalidades da sedução criadora. Ao lado de Nietzsche, o outro apelido: Platão. Entre nós – diga-se – jamais se escreveu tão belamente sobre as amplas e apaixonantes inferições nascidas da ardente leitura do Íon. Em um texto e em outro, dois poetas, Nietzsche e Platão, situam os lados de um mesmo e diferido signo. Os dois na escrita de Alberto Pucheu estão a ler-se. Vemos a guerra vital, o par em treinos e, sobre ambos, a claridade, os raios musicantes. Nesse espaço privilegiado da dança, do corte, da carne e do sangue, encontra-se o livro este – com seus poderosos poemas encravados no ato-ler, seus acordes discursivos, suas elipses, seu caminhar ininterrupto até pôr nas mãos o sumo dos corpos e dos sentidos. Tratados ficam o próprio e o impróprio, a ventania dos existires. Andando por estas folhas, deparamo-nos com raças outras de elefantes, hipopótamos, rapsodos, filósofos, poetas, sábios, átopos, dianoias, centauros e outros e outros e outros mensageiros alegres: Manoel de Barros, Beckett e tantos mais apelidos dos que dominam os explosivos da paixão pelo escrever. Que aqui se entre – não há como não –, reconhecendo haver livros abertos dentro de livros abertos, jogos de recepções e de entendimentos. Músicas, lutas, transportes, mapas.