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DOIS POETAS VIGOROSOS DO NOSSO TEMPO
Caio Meira e Alberto Pucheu, vozes que expressam sem concessões a complexidade contemporânea
( Resenha publicada no Prosa & Verso , de O Globo , em 30 de julho de 2004. p. 3)
Quase que na surdina , com livros pequenos e com tiragens pequenas , mas cada vez mais bem cuidados e elegantes , a Azougue Editorial tem, nos anos recentes , publicado alguns dos melhores e mais instigantes livros de poesia que têm surgido por aí . É o caso , por exemplo , de “ Morrer ”, de Guilherme Zarvos, publicado no ano passado sem que tenha recebido a merecida atenção . É o caso também de pelo menos duas das edições mais recentes da editora , “ Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer ”, de Caio Meira, e “ Escritos da indiscernibilidade”, de Alberto Pucheu. Amigos de longa data , mas cientes da morte das vanguardas e da futilidade das bandeiras erguidas em torno de grupos , esses poetas se aproximam da fecunda faixa dos 40 ( quando a obra de um poeta costuma começar a revelar seus mistérios e contornos mais profundos ), com obras que se distinguem pela individualidade e pelo vigor . Em comum entre ambos , principalmente o fato de serem poetas que estão logrando digerir as diferentes vertentes da poesia brasileira atual e oferecendo possibilidades genuinamente novas para ela ; enquanto expressam sem concessões e com notável consciência e maestria de linguagem a complexidade do ser contemporâneo . Isso não é pouco .
Com “ Escritos da indiscernibilidade”, Alberto Pucheu, que também é filósofo, procura “ descobrir relações de mestiçagens ” entre filosofia e poesia , e declara desinteresse por “ toda poesia que , implícita ou explicitamente, não oferece uma densa malha do pensamento ”. Composto por fragmentos que se sucedem e constroem com rigor a aproximação possível ao seu tema , encontramos no livro afirmações que vão direto ao âmago : “Gostaria de lançar para a poesia , para a arte , o conceito de ínfima mediação, ou , como prefiro, abreviado, o conceito de: i.mediação”. Ou essa, iluminadora: “ Atingir a autenticidade do pensamento , sobretudo nos dias atuais , mas também em qualquer época , está diretamente ligado a se deixar acolher por uma zona de esvaziamento, por uma zona de esquecimento , para poder ser surpreendido pelo impensado que habita silenciosamente o mundo e quer nos ocupar ”.
Mas isso é poesia ? Sim , é poesia , e das boas. Não apenas porque poderíamos dizer que poesia é tudo aquilo que chamarmos de poesia — e, afinal , a arte conceitual vem promovendo apropriações parecidas e riquíssimas no campo das artes visuais há décadas — mas porque os textos estão impregnados de vida — ou de “ admiração ”, como coloca o poeta — mais pulsante e genuína . É ler para sentir .
As seções “ Escritos da admiração ” e “ Escritos da ínfima estranheza ”, que abrem o livro , tratam dessas mestiçagens , da linguagem , e do silêncio — que num admirável tour de force o poeta-filósofo mantém dentro do âmbito da palavra — de uma maneira excitante e tensa .
Nas duas seções seguintes , “ Escritos da sintaxe do trânsito ” e “ Escritos da vida ”, que remetem às experiências poéticas de seu livro anterior (“A vida é assim ”), o poeta reflete sobre a linguagem esticada até o limite da fronteira entre ser e não-ser, e chega ao paradoxo que já havia apontado: “a linguagem , por fundamento e definição , é poética , mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”. Pucheu, amigo do mito e do saber , expande os limites do poético. “ Escritos da indiscernibilidade” deve ser estudado, principalmente por aqueles ávidos em produzir pensamento e poesia .
O universo das “ secreções sebáceas, tubos , alvéolos ”
O terceiro livro de Caio Meira, “ Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer ”, encontra uma saída para as questões de ser e do esvaziamento necessário para um pensamento autêntico , propostas e resolvidas por Pucheu exclusivamente dentro da esfera da linguagem , através de um mergulho profundo em seu próprio ser físico , a começar pelo sensorial , pelo corpo . Nos extraordinários poemas que abrem a primeira seção do livro , “Epidermática”, o eu poético recua para dentro de si mesmo (“ acordo e durmo debaixo da pele ”), até o universo das “ secreções sebáceas, tubos , alvéolos ”, para , a partir daí, elaborar — com extraordinário domínio de linguagem — uma identidade que é ao mesmo tempo absolutamente centrada em si , nas suas histórias e dúvidas sobre as decisões tomadas na vida , e aberta e permeável ao caos e à grandeza do mundo .
Em “ close to the bone”: “ por vezes sinto esse torvelinho dentro da barriga , e não sei se é fome ou lembrança de fome , ou se são movimentos espontâneos da voracidade do vazio ”; em “ sob o sol cerrado ”: “o mesmo sol desperdiçado no topo de uma montanha solitária (avistada através de um cartão-postal )”.... “ pegar um punhado dessa mistura de mato seco , poeira e formigas , cheirá-lo ou talvez comê-lo, não significa ficar mais próximo da terra ou da gente ”; em “entre-fôlegos de um basqueteiro solitário ”: ...“ talvez fosse milionário e igualmente descontente , talvez estivesse feliz criando cogumelos em Nova Lima ”... “ talvez eu deva jogar na mega-sena acumulada ”, ... “poderá caminhar à tarde , pegar o metrô em Botafogo e ir ao centro da cidade procurar um livro no sebo ?”.
O livro , enfim , fala do sentido da vida . Algo que está sempre nascendo. Apesar de declarar sua completa ignorância sobre a existência (“sei que tenho 32 dentes , leio livros e jornais , vou ao mercado e ao cinema , escuto música clássica e popular , e posso dizer de cor os números dos meus documentos , além de uns poucos poemas aprendidos há muito tempo ”), o poeta aceita-a em seu evidente mistério , e após o reconhecimento honestíssimo e crítico de si , do seu trabalho (“De como e quando se descobre uma falcatrua ” é um dos principais poemas do livro ), do mundo e do seu lugar no mundo (“e num desses dias , ele acorda querendo colocar um som mais potente no carro ”), parte para o reconhecimento , às vezes ácido , às vezes compassivo , do Outro , seu espelho , nas seções “Outras vidas , a mesma ” e “Venéreas”.
Como aponta Leonardo Fróes em seu prefácio ao livro , “ Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer ” atesta a visão de alguém que parece “ ter sentido muito e a fundo as confusões ao redor ”; e que , com rara maestria e sensibilidade , soube digeri-las e traduzi-las para o leitor .
RENATO REZENDE é poeta , autor de “ Aura ” e “ Passeio ”, entre outros
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