ENTRE TRANCOS E ESPANTOS

Alberto Pucheu afirma sua poesia em um pequeno e precioso livro de apontamentos

( Jornal Rascunho , março de 2004, p. 13)

por Fabrício Carpinejar

Alberto Pucheu afirma sua poesia em um pequeno e precioso livro de
apontamentos , " Escritos da Indiscernibilidade", e mostra que não tem medo de
pensar seu próprio trajeto e conciliar a água da filosofia com a
eletricidade do poema .

Fabrício Carpinejar*

 

Um dos equívocos de leitura da poesia é acreditar que o autor é real . O poeta não é real , real é o leitor . O escritor e filósofo carioca Alberto Pucheu preparou seu caderno de notas , algo como uma bússola de sua poesia , apontamentos mínimos de sua travessia verbal . Relaciona a poética com a filosofia , casando as duas áreas em investigação da sensibilidade . Seus ensaios breves combatem o estigma da filosofia na poesia . Recupera a aura de uma produção literária fronteiriça , que já gerou no país a teologia do mínimo de Manoel de Barros e Adélia Prado , os mitos sedutores de Dora Ferreira da Silva, os teoremas de Orides Fontela e a alquimia de José Santiago Naud e Foed Castro Chamma. Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima ,é um exemplo de livro espesso ainda desvalorizado pela historiografia, apesar da vibrante metafísica , densidade arquetípica e de exultação rítmica.

O título de Pucheu já causa a estranheza necessária : Escritos da indiscernibilidade ( Editora Azougue , 60 páginas ). Lembra nome de tese pelo padrão culto e rebuscado , mas é uma fachada para elucidar semelhanças e diferenças entre os dois campos . Alberto começa polemizando, destruindo lugares-comuns como o de dizer que a filosofia e a poesia se alimentam das dúvidas e interrogações. Ele não desperdiça chances , como um autor que joga metade de um tempo para o time dos filósofos e a outra metade para o time dos poetas . Tudo fica empatado com os gols dele. " Poesia e filosofia não principiam pela indagação ; nem pela dúvida . Mas pela exclamação das palavras que insistem em transbordar com o admirável , a ponto de não se distinguirem dele."

O que não pode ser dividido é poesia . A criação partiria de uma descoberta passional , não de um questionamento frio e higiênico . Emerge de uma revelação fútil , de um detalhe fugaz , onde o " próprio cotidiano se descobre extraordinário ". O poeta não teria que decifrar o enigma , ele já é o enigma , procurando perdurar a beleza da verdade . Nesse sentido , não quer resolver o
mistério , o equivalente a assassiná-lo, mas perdurá-lo, preservá-lo. A poesia é o transbordamento interno , nunca externo . Não está no verso , mas no seu trânsito entre o possível e o inadmissível . As instruções de uso são :" desalgemar o poético do poema , do que se convencionou chamar de poema ; deixá-lo fugidio pela cidade , perigoso , arrastando o que lhe aparece pela frente ". Resulta daí a importância do pensamento poético contar com o" auxílio dos escombros ", ou seja, da destruição dadivosa , da afirmação pelo aniquilamento e da junção de coisas antagônicas em um mesmo invólucro . Uma dos trunfos de Alberto Pucheu é desestabilizar antônimos . " Habitualmente , compreende-se o prosaico como o contrário do poético. O contrário do poético, entretanto , é o próprio poético". Esse paradoxo talvez seja o maior acerto do livro ao perceber o poema como inimigo do poema . Quando uma metáfora sobrecarrega a outra , nenhuma faz sentido . O poema é escapar da metalinguagem , não se olhar no espelho , se ausentar , para fazer valer a vida . Assim retomamos a perspectiva do "poético como gênero desviante" de Benedito Nunes, um dos teóricos corajosos a fazer analogias entre a poesia e a filosofia a partir de autores como Hölderlin.

Na filosofia , os pensamentos se misturam, sem que cada um perca a individualidade Na poesia , eles se fundem, soldados em metal e imagem . Eles sacrificam a sua origem para ganhar uma outra textura , aparecendo mais como um espírito do que como corpo . Como diz Pucheu, o poema deriva de conexões inesperadas entre palavras cotidianas, das zonas de instabilidade . Articula-se dinamizando relações , e não estagnando idéias . A proposta de Escritos da Indiscernibilidade, dividido em quatro capítulos , é admitir a casualidade e o improviso na ação lírica . " Para que , na complexa trama da superficialidade , um pensamento poético, incondicionalmente a favor da vida
e de seu perigo oscilante , aposte no presente irretratável ". Falar nãoé aceitar a fala , mas desafiar a fala , resistir às facilidades . Procurar a simplicidade orgânico , não o simplório . Difícil ? Não , se o escritor optar pela fluência do que ouve do que pela ambição de ser ouvido .

A filosofia e a poesia aparecem irmanadas, com destinos complementares , ainda que diferentes . "Há poetas que até sabem escrever , mas como pensam mal ! E filósofos que sabem pensar , mas como lhes falta o ímpeto da criação !", ironiza Pucheu, fiel adepto da gramática da rua e da sintaxe do trânsito . O escritor defende o tratamento de esgoto da literatura brasileira . Pede bueiros nas páginas , prevenindo a inundação sentimental e o experimentalismo oco .

POESIA HIPER-REALISTA

Alberto Pucheu, 37, é de uma linhagem que não separa a poesia da vida . Olha simultaneamente à esquerda e à direita , para "a paisagem e o livro ". Evita a faixa de segurança : tem conhecimento de causa que a poesia serve para dizer o que não somos, ao contrário dela decretar um perfil definitivo . Com cinco volumes publicados (Na Cidade Aberta , Escritos da Fragmentação , A Fronteira Desguarnecida, Ecometria do Silêncio ), une a tradição reflexiva clássica com o despojamento verbal e andamento coloquial modernista. Representa um filósofo leigo , cujo sistema de pensamento é constituído de praias , favelas , ruínas e arranha-céus . Obsessivo , temas voltam à tona confirmando uma seqüência antológica entre seus livros .

A vida é assim ( Azougue , 63 páginas , 2001), seu livro de poesia mais recente , tem um viés digno da escola de cinema italiano neo-realista. "Entro, com os pés descalços , na cidade aberta ." Além das coincidências , cidade aberta remete a um dos filmes mais conhecidos dos anos 40 de Roberto
Rosselini e o título de estréia de Pucheu.

Entretanto , o poeta não quer imitar a realidade . Sugere um hiper-realismo, com um toque macabro de imaginário para extrair o melhor e o pior dos dias . Decantado em três capítulos , a obra contém 13 poemas em versos livres , três crônicas poéticas e uma tradução de um poema inexistente . Em linhas gerais , apresenta um homem na crise dos 30 anos , que avalia com pessimismo as possibilidades de seu futuro .

O sumário já permite perceber que estamos diante de um texto especial . Prosa e poesia trocam de guarda , ambas alicerçando a expansão e elasticidade da linguagem em direção à vertigem do cotidiano . " Difícil ficar ileso aos verdes da manhã , ao trabalho diário , aos acontecimentos que , mesmo corriqueiros , me contaminam."

O escritor enquadra as miudezas com luz natural e foco crítico . Tudo passa para permanecer . A intensidade da sonoplastia revela-se no pendor discursivo e antiformalista. Capta inclusive os ruídos e os choques , incorporando ao vocabulário termos abruptos e pouco poéticos, a exemplo de "hidropisia" e"rinocerôntica". Em seu caldeirão de timbres , fotografa o vaivém de vendedores entre o trabalho e o lazer .

 

Não existe uma única interlocução e nível de linguagem . São vários estrados sonoros e visuais . A diferença é que o autor medita com serenidade , tem consciência dos seus alvos . "Recolho do mundo uns tiros de espanto ". É um atirador de elite , disposto a abrir as fronteiras da cidade e do próprio canto .

Ao pontuar " todo lugar é Rio ", também afirma que todo lugar é poesia . O zelador com radinho de pilha , o entregador de lista telefônica e o varredor de rua são catalisadores da eletricidade de suas observações . A fluência descritiva e irônica lembra Tabacaria de Álvaro de Campos , heterônimo de Fernando Pessoa . A visão não é a de um ponto fixo , de alguém parado em uma janela , e sim da janela em movimento de um automóvel . Não existe encontros , mas esbarros e acidentes . "Acataria sua espontaneidade de querer ser o que não se é ( para só aí ser )." Ocorre a desfragmentação do sujeito . Não há uma casa para centrar o repouso .

A velocidade é identificada pelo ininterrupto deslizar . Algo sempre escapa , empurra para frente , impede a reprise . É um movimento que não aceita marchaà ré , um " arrastar contínuo " pela dispersiva multidão . Os versos de Meditação à beira da morte concentram as principais virtudes do conjunto , uma visada filosófica sobre o trivial e o excesso de memória que nos distrai. " Apenas o sopro ,/ último reduto que ainda me resta , resiste/ na tensão do que falo , no negativo de minha própria voz ./ Só terei o esquecimento de mim , esperando esquecer / até o esquecimento ...".

Pressente-se uma lírica que se afirma pela negação , com a absorção de expressões populares como " me inclui fora dessa", " vaso ruim não quebra " e" mostrar pra essa gente como é que se faz". As " metáforas mortas" - os ditos folclóricos - intercalam as metáforas vivas e pessoais , fortalecendo os instantes de revelação .

Pucheu diz a metade do que ambicionava proclamar , deixando a impressão de que as palavras não foram capazes de exprimir o que desejava. É uma deliberada inconclusão. "As palavras me fogem." Refratário à idealização, sugere, incita e provoca o leitor , esperando sua reação . " Não vivemos da
melhor maneira : mas da maneira possível ."

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