O apelo. À vida. Daí o livro como ponte - entre vida e leitor: “juntar as margens”. Mas, cuidado: uma ponte muito extensa pode antes afastar do que aproximar as margens. Por isso o conceito proposto: “ínfima mediação”, ou, em sua expressiva versão abreviada, “i.mediação”. Não imediação, mas “i.mediação”. O ponto faz toda diferença. A ponte como ponto: reduzir as distâncias, mas não as suprimir. Suprimi-las seria, como alerta Deleuze, cair no “equívoco com o vivido”. Pois o ponto, a ponte é precisamente o lugar de passagem e acolhimento do imediato (a vida) ao meio (o livro): o lance da arte, seu desafio.
A escrita. “Privilegiar as implicações às explicações”: uma ética dos deslocamentos, esbarros, “batidas redirecionantes”. Os fragmentos. Por quê? Porque são avessos às deduções e demonstrações - “supérfluas”, como desdenhava Schlegel. Porque vão direto à coisa, sem rodeios; são propícios à modalidade do susto, à pertinência única do que aqui se propõe: “o inesperado”. Porque “fortalecem neles e em nós a autenticidade do pensamento”. Como? Através de suas descontinuidades, do espaço aberto por seus cortes, de sua indeterminação contextual que arroja o leitor no exercício da difícil liberdade da contextualização, da decisão do sentido. E ainda porque, como queria Montaigne, são feitos de “suco e substância”, de “vivo e de medula”.
O lugar. O pensamento. Poético. Pois: aqui se pensa o poético como “eclosão”, “instabilidade”, “espanto”, “enigma”. A tarefa do pensamento, do poético, é freqüentar esse lugar, manter a “admiração” em estado de abertura. Sua ambiência é, portanto, o “filogenético”, na encruzilhada do arranjo desse termo: uma ética da convivência com as forças de surgimento. E é aí, na freqüentação dos enigmas, que poesia e filosofia compartilham um lugar; os Escritos emergem dessa zona de anulação de sua diferença, ou, o que vem a dar no mesmo, sobrevêm de sua convergência.
A cidade. Como poética: “Escrevo... como o asfalto escreve seu diário”. Estar no pensamento como quem está na cidade, em meio a seu burburinho, sua polifonia, suas ruas e cruzamentos. Ouvir a fala da cidade, como se ouve o pensamento: à espera ativa de que uma frase, saturada, se destaque. Como essa, colhida de um transeunte nas ruas da Glória: “Assim, na bucha, eu não falo não, mas deixa eu me esquecer que, de repente, eu falo...”. E ainda, importante, a afirmação da cidade como “valorização das confusões características da atualidade”, voto de adesão incondicional à vida e ao “presente irretratável”.
Os paradoxos. Dos quais já se disse, com razão, serem a paixão do pensamento. Mas aqui, mais decisiva do que sua peculiar inadequação lógica, é sua vocação desestabilizante, reorganizadora das expectativas: “O que me importa é o nevrálgico entrelaçado ao pensamento, o que tem de utilizar o ‘literário’ para poder descobrir-se e ultrapassá-lo... mas não acaba sendo o ultrapassamento do ‘literário’ justamente seu ápice?”. Sendo o enigma quem, com sua força de pensamento, comanda esses paradoxos, não encontraremos neles o gracejo fácil, a afetação, o que Schlegel chamava de “estilo alexandrino no chiste”: Witzelei, traduzível por “chistice”, como se diz, da afetação literária, “literatice”.
Um caminho. Este: num tempo de hipertrofia dos saberes, saber reconhecer os disfarces da esterilidade e “se deixar acolher por uma zona de esvaziamento, por uma zona de esquecimento, para poder ser surpreendido pelo impensado que habita silenciosamente o mundo e quer nos ocupar”.
Francisco Bosco