CRÍTICA ARTÍSTICA
Publicado no dia 22 de dezembro de 2007, em Cartas, do Prosa & Verso, de O Globo, na página 2
Para quem disse publicamente que não leu e não gostou de um livro contemporâneo, sinto-me privilegiado por Pécora começar sua resenha com “Li os dois livros de Alberto Pucheu”, ainda que só fale do de ensaios, deixando a poesia reunida com meia frase destinada a ela. Estranha maneira de um crítico escrever sobre dois livros, mas, vindas dele, a garantia inicial de sua leitura e meia frase a respeito de uma das obras já mostra uma melhora.
Alegra-me ter observado pontos importantes de “Pelo Colorido, para além do Cinzento”: uma crítica à crítica desvinculada da criação, a busca de um ensaísmo poético e a reconciliação do que, para ele, é inconciliável, filosofia, poesia e crítica. Sem fundamentação e não levando em conta pensadores da maior importância, sua certeza do inconciliável aparece, entretanto, de modo autoritário e opinativo.
Descontextualizando uma resposta de uma entrevista em que, divertidamente, vinculo o espanto ao jeito carioca de ser (o deus Tháumas, Espanto, é litorâneo), o crítico zomba do “jeitinho carioca” de meu trabalho, ressalta sua “falta de base de ser carioca”, diz ser “papo-cabeça” o “jeitinho do Rio” de conciliar poesia, filosofia e crítica. Criando uma tola rivalidade não apenas comigo, mas com a cidade em que vivo e parte de nossa tradição, dá-se a entender que sua tentativa é minar um pensamento do Rio.
Ele não sabe que o “jeitinho carioca” é antes grego e, desde então, de qualquer lugar. Espanto traduz a palavra que Platão e Aristóteles usaram para falar da origem da poesia, da filosofia e da conjunção entre elas. Contra minha constatação de uma pluralidade de vozes nos diálogos de Platão, ele os lê como “um método para certo tipo de demonstração filosófica”. Essa leitura – de manual – mostra sua completa falta de intimidade com o filósofo. Escutando somente a voz da “demonstração”, não enfraquece apenas as outras personagens, mas a de Sócrates e, pior, o próprio Platão. Para ele, melhor se fossem monólogos, não diálogos.
Ele estranha eu falar de poesia e filosofia simultaneamente em Platão. Entre outras coisas, não deve ter lido a referência a Aristóteles, que afirmou: “a forma de seus escritos ficava entre a poesia e a prosa”. Como isso, para ele, é demais, sua saída é dizer que minha tomada de posição é inconsistente. Pura opinião de quem critica o que não sabe em nome do senso mais comum.
Torcendo sentidos, afirma que, para mim, “exegese e interpretação são irrelevantes”. Poderia ter explicado que tomo o termo exegese do “Íon”, de Platão, que o critica em nome de dois outros tipos de interpretação, o da poesia e o da filosofia. Para saber que existe, no “Íon”, três tipos de interpretação e pensar suas nomeações, valorações e articulações, é preciso um contato forte com o diálogo.
Sem entender o que está em ação no livro, afirma que, contra a exegese e a interpretação, fico só com a interjeição. Ele não informa que, após eu escrever que num primeiro contato com uma obra “apenas a interjeição é possível”, coloco essa suspensão como necessária ao pensamento que, insistindo em pensar a partir dela, “deseja deixar um encadeamento de palavras inventar novos rumos”. Só lhe interessa fazer com que o outro caiba em seu aparato redutor e maniqueísta.
Ele afirma que só me interessa “a crítica que decorre da ‘simpatia’”. Herdo a simpatia de Fernando Pessoa, que a colocou como um dos fundamentos para o intérprete, sem os quais “os símbolos serão para ele mortos”. Os símbolos do meu livro estão, de fato, mortos para Pécora, que não se aproxima deles.
O fato de eu partir de passagens em que grandes escritores abordam “vida”, pensando-a como um parâmetro para o poético, o leva a chamar esse pensamento, não sem ironia, de “vitalismo mágico” e dizer que eu mitifico o artista por falar que a arte serve às potencialidades da vida. Mitificar o artista apenas porque digo que eles pensam a literatura a partir da vida, mostrando algumas de suas intensidades maiores?
Sem avisar que falo de Antonio Candido como considerado o maior crítico brasileiro e valorizo passagens em que articula literatura e vida (o resenhista o acusará de “vitalista mágico”?), sem mostrar que, falando da “gentlemania excessiva” de Candido, acrescento “de quem até poderia avocar sua escrita como colorida, mas não o faz”, o resenhista recorta para me antipatizar com Candido. Menciono o cinzento da crítica citado por Candido que se apropria de Goethe para mostrar que, mesmo nos críticos que poderiam assumir suas escritas como criadoras, persistem o que Euclides da Cunha chamou de “escrúpulos assombradiços da crítica literária”.
É Antonio Candido quem escreve que “a crítica é cinzenta, e verdejante o áureo texto que ela aborda”; é Silviano Santiago quem afirma que o crítico “sempre vem a reboque” do artista. Flagrei o que alguns representantes da melhor crítica brasileira dizem de si para, descobrindo seu limite constitutivo, apostar numa superação de tal limite, em nome de uma crítica que, simpática à arte, seja também artística.
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