RESENHA: FRANCISCO BOSCO |
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UMA MINIANTOLOGIA DE 2007 Francisco Bosco
Ninguém, hoje, dá conta de ler tudo que foi publicado durante um ano, nem sequer em seu próprio campo de saber. Por isso não se pode dizer, categoricamente: “eis os melhores”. Mas também por isso, pela saturação que pode nos conduzir a uma postura defensiva, fazendo com que nos dediquemos apenas a conhecer o já consagrado pela tradição, é que se tornam necessários filtros de leitura, decantações da imensa produção, leitores que façam o trabalho de destacar o que é de destaque, para que se tenha alguma orientação na biblioteca infinita do contemporâneo, e não sejamos completamente tomados pela angústia da oferta excessiva. A coluna de hoje é um desses gestos de leitura: os livros aqui elencados, acredito, merecem ser lidos, são brilhantes, excelentes ou originais, isto é, cada um à sua maneira, relevantes. . No one belongs here more than you (New York: Scribner, 2007). Miranda July – Quem assistiu ao filme Me and you and everyone we know provavelmente terá se espantado com aquele cinema tão autoral, tão cheio de marcas de uma assinatura intransferível, terá se espantado ainda mais ao saber que a diretora é a atriz principal do filme, que ela ainda é artista plástica, que as instalações que aparecem no filme são dela, e quem levou adiante o interesse por seu trabalho já terá lido seu primeiro livro, uma coleção de short stories, publicado nos EUA, mas imediatamente disponível em outros países (eu o comprei em Paris). Neste livro, o leitor reencontrará os mesmo traços de seu brilhante filme de estréia: um olhar espantado para o mundo, digno de filósofo pré-socrático em avatar feminino pós-tudo (olhar que, na foto da orelha do livro, beira a mitologia, sendo este o único e irrelevante senão que faço ao livro), uma ternura que a toda estranheza cobre de uma dimensão amorosa e humanizadora, certo erotismo excêntrico, isto é, erotismo simplesmente, pois nada é menos erótico do que as fantasias prèt-à-porter do mundo contemporâneo da publicidade e das grande mídias, e ainda um humor muito sofisticado. O universo artístico de Miranda July tem uma mistura singular de ternura e estranheza, de perplexidade e familiaridade, que faz dela uma das criadoras mais originais do nosso tempo. . Pelo colorido, para além do cinzento (Rio de Janeiro: Azougue/Faperj, 2007). Alberto Pucheu – Esta reunião de ensaios apresenta, notadamente em seu texto de abertura, sem exagero chamado pelo autor de “quase um manifesto”, uma formulação original acerca dos limites e das potências da crítica literária, pensada tanto em seus fundamentos teóricos quanto em suas atualizações históricas, no Brasil e no mundo. Fundamentalmente, Pucheu reivindica uma crítica que seja capaz de livrar-se do complexo de inferioridade a que é com freqüência relegada – às vezes por alguns de seus melhores praticantes – e assumir para si um estatuto tão inventivo e criador quanto o da própria literatura. Ao postular, desse modo, uma “crítica poética”, é preciso entender que o autor não se refere a um hibridismo superficial qualquer entre a crítica e o poema, mas sim a uma elaboração de pensamento que seja capaz de restituir ao texto de que se origina o seu vigor de irradiação de significantes, que se lhe possa irmanar em capacidade de instauração, que, em suma, não tome para si como constitutivo de sua condição um grau menor de invenção do que o das obras literárias. Pucheu não recusa o valor de outras funções da crítica, como classificar, esquematizar, sistematizar, explicar, hierarquizar, contextualizar etc., mas tampouco aceita que esses sejam os únicos parâmetros para sua produção e avaliação. Barthes, que foi certamente um crítico inventivo, um crítico-escritor, se quisermos, diz, em Critique et vérité, que “apenas a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. (...) Ir da leitura à crítica é mudar os desejos, é não mais desejar a obra, mas sim desejar sua própria linguagem [a do crítico]”. À sua própria maneira, como não poderia deixar de ser, desejando sua própria linguagem, Pucheu corajosamente aponta os limites da crítica, não para diminuí-los, mas para que eles se percebam como contingenciais, abrindo-se à possibilidade de uma outra crítica: poética, criadora, instauradora. . Tarde (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Paulo Henriques Britto – Acompanho a poesia de PHB desde Trovar claro, além de volta e meia deparar-me com suas excelentes traduções de prosa e poesia de língua inglesa. É um dos poucos poetas de que espero o novo livro, com a convicção de um encontro renovado com sua idêntica e diversa poesia. Quando saiu Tarde, eu estava em meio a pesquisas para um ensaio de fôlego, concentrando a energia necessária para uma escrita de maior extensão. Não deveria distrair-me dessa concentração, mas não resisti, comprei o livro na primeira vez que o vi numa livraria e o li de enfiada, numa madrugada insone. Saí da leitura, já às quase cinco da manhã, ainda mais insone, e com uma vontade – que foi difícil domar – de largar as pesquisas e escrever um ensaio sobre o livro. Não levei a vontade adiante porque não podia mesmo, mas ela permanece como idéia e projeto. Nesse momento, o que do livro existe em mim é apenas a nítida sensação de uma dessas raras leituras em que a gente parece ter o que desdobrar de cada verso, de cada metáfora, de cada rima, de cada movimento da sintaxe, e de tudo que se vai depositando sob o fundo dos poemas, adensando-se como questões decisivas e ainda por se revelar numa outra língua, menos e mais reveladora do que a da poesia. . Ensaio Geral (São Paulo: Globo, 2007). Nuno Ramos – O artista plástico Nuno Ramos é também um brilhante ensaísta. Eu o descobri graças a Arthur Nestrovski, que um dia me enviou um ensaio de Nuno sobre Paulinho da Viola que acabara de ser publicado. Desde então venho acompanhando, à medida em que vêm a público, seus textos ensaísticos, e aguardando ansiosamente sua reunião em livro. A expectativa é cumprida de sobra com esse Ensaio geral, que reúne os movimentos ensaísticos de Nuno sobre temas como literatura, artes plásticas, futebol, teatro e canção. Há em tudo o mesmo brilho, a mesma dicção elegante e o compromisso primordial de tentar revelar o que nos fenômenos é mais nuclear, mais singularizador. Sua escrita é sempre fluente, desprovida de marcas ostensivas de erudição; seu propósito maior parece ser sempre o de revelar, mais do que explicar; seu olhar é a um tempo abrangente e preciso; distante da exegese e do comentário minucioso, atinge sempre, entretanto – ou por isso mesmo –, o mais íntimo e fundamental. É um ensaísta, não um teórico ou um crítico. E, todavia, não o sendo, realiza à perfeição a teoria e a crítica: flagra as leis universais de um jogo de futebol com a mesma aisance com que desvenda os segredos da arte de Nelson Rodrigues. Não há desperdício em sua escrita, que em cada movimento nos surpreende com uma nova percepção do objeto. Se tivesse que definir seu ensaísmo em uma palavra, diria: brilhante. . Comment parler de livres que l’on n’a pas lus? (Paris: Éditions de Minuit, 2007). Pierre Bayard – Ainda sem tradução no Brasil, mas com uma edição prometida, pela editora Objetiva, para o ano que vem, esse delicioso livro de Bayard não é menos do que uma revolução na nossa auto-representação da leitura. Contrariando as idéias recebidas, o autor argumenta que se pode, sim, perfeitamente falar de um livro que não se leu, que o universo da leitura repudia os conceitos puros, que as fronteiras entre ler e não ler são muito mais indefinidas do que se costuma pensar. Há livros que lemos e esquecemos, há livros que não lemos e lembramos, há livros que lemos parcialmente e conhecemos profundamente, há outros que lemos integralmente e conhecemos muito menos. Escrito com elegância, estruturado com inteligência, pensado com originalidade, esse livro é sobretudo liberador: derruba as mitologias totalizantes e culpabilizantes, os resíduos da necessidade imperiosa de saber – deixando-nos o campo livre para o fazer. |
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