RESENHA: ANDRÉ GARDEL |
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Escritos da fronteira Alberto Pucheu mostra propostas filosóficas e estéticas dos poetas dos anos 90
( Resenha saída no caderno Idéias , do Jornal do Brasil, no dia 3 de janeiro de 2004) A poesia de Alberto Pucheu segue uma trajetória muito particular nas letras brasileiras contemporâneas. Inserido na geração de poetas que começou a publicar ou a fixar suas poéticas nos anos 90, vem construindo em sua obra um universo de propostas estéticas e filosóficas dos mais coerentes e dinâmicos , perpassado por uma escrita de alta voltagem poética , o que lhe dá uma posição de destaque nessa produção , marcada, como é sabido , pela heterogeneidade de vozes literárias que não se organizam em escolas , e por um perfil estilístico que se conforma na reciclagem atualizada de padrões estéticos da tradição , mais do que por um desejo de tangenciar os limites formais da criação inventiva .A linhagem de poetas de língua portuguesa com a qual podemos dizer que a obra de Pucheu estabelece diálogo é a dos poetas-filósofos, uma estirpe de escritores como Raul de Leoni, Fernando Pessoa , Carlos Drummond de Andrade, Antonio Cicero. Tais poetas problematizaram as relações entre poesia e filosofia , conceito e imagem , seja pela maior incidência da logopéia, “a dança das idéias entre as palavras ”, no dizer de Pound, nos seus poemas reflexivos , seja pela realização de uma produção paralela , intencionalmente de modo não intercomunicável, como é o caso dos escritos de outro criador que se estabelece na poesia livresca também nos anos 90, Antonio Cicero. Alberto Pucheu, ao contrário , é um habitante da fronteira . Toda sua obra floresce na tensão interdisciplinar desses dois modos de apreender e conceber realidades e mundos impalpáveis . Toda sua obra se estrutura , se distende, se contrai nessa ambiência de passista das letras que escuta simultaneamente, na mesma altura e disposição , dois gêneros musicais com pulsações e ritmos diferentes , e concebe coreografias poéticas que nascem dessa hibridação, dessa mescla , dessa interferência de saberes , sabores e vozes . Desde de seu primeiro livro , Na Cidade Aberta , escrito em 1993, até o que está lançando agora pela Azougue Editorial , Escritos da Indiscernibilidade , essas questões são lançadas, retomadas e renovadas, percorrendo o largo espectro de suas possibilidades especulativas, com instantâneos de indistinções absolutas e demarcações inevitáveis , de ruídos e audições cristalinas, de sujeiras e roupas quaradas ao sol . Escritos da Indiscernibilidade é um livro teórico com andadura e compleição poéticas . Com conceitos e definições que nascem de eixos de formação de linguagem ( sintático , semântico e até gráfico ) poéticos. Por exemplo , a idéia filosófica de um constante devir que gera a “ admiração ” e o “ espanto ” , expressões que descrevem os estados primordiais em que o amigo do saber (o filósofo) e o amigo dos mitos (o filômito) se encontram ao viverem a “ miscigenação ” inevitável que os escritos de palavras-seres indiscerníveis propicia, surge como sema recorrente mas também como sinal gráfico , as reticências que abrem o livro para sugerir o moto contínuo reciclante da criação . Ou , ainda , no uso conceitual da intenção contida no ponto de exclamação , em contraponto à interrogação que se distancia do “ enigma da vida ” e do “ afeto imediato ”, para definir o pensar poético: “ Pensar poeticamente é se atrever ao pré-dito do pensamento (...), permitindo-lhe se apresentar nas palavras ”. Outro procedimento em que a mecânica mágica da criação poética serve para a conformação do universo teórico , ocorre quando Pucheu renomeia os elementos do sistema de linguagem que estruturam o texto . Renomear significa encontrar novos fluxos de sentido , novo início , atravessar com nova luz o “ enigma do cosmos em seu constante movimento de criação ”. Daí afirmar que não pensa com “ palavras , versos ou frases : penso somente articulações , acasos , arranjos ...”; com isso , as palavras “ arranjos ”, “esbarros”, “ articulações ” etc, retomadas em toda sua obra em momentos e formas diferentes , são revitalizações miscigenantes, levando logicamente a determinações conceituais outras, da mecânica da criação poética representada e padronizada pelos tropos , figuras de linguagem e pensamento . Ao buscar uma zona movediça de convivência intereagente para uma “ poesia poética ” e uma “ filosofia filosófica”, Pucheu, amante das tensões que surgem dos paradoxos , antinomias , oxímoros, se lança na empreitada de revisitar topos da teoria literária e da cultura para , a partir disso, reafirmar uma poética que funciona sob a égide de conceitos que se esgarçam entre o espanto e o entusiasmo , a essencialidade e a experimentação dos limites , a ética e a estética , a palavra e o cosmos . Tais temas são atravessados pelo fogo heraclitiano de seus escritos , perpassados pela dinâmica de quem “escreve como escrevem as coisas , os bichos ou minha desproteção ”. Muitas visões de mundo , concepções artístico-filosóficas, pensamentos críticos da tradição ou da contemporaneidade, disponibilizados para o livre uso , diálogo ou intervenção cirúrgica criativa pela desrepressão estética pós-moderna, são , com isso , refuncionalizados e reinscritos no mundo pela obra de Pucheu. Da modernidade vai pinçar a escrita fragmentária , “ símbolo do poético-filosófico”, contra “a explicação lógica e a maquiagem discursiva”, para fixar os modos de justapor e coordenar suas reflexões . Das estéticas clássicas vai redefinir o motivo da imitação , não mais entendido como manutenção da autoridade de modelos literários considerados atemporais ou da natureza da razão divina , mas dando à palavra um status de “partícipe da criação do mundo , criadora contígua do real ”; se a arte “é imitação é apenas neste sentido : criando, mostra a realidade enquanto criação ininterrupta ”. Para pensar o poético para além do poema , vai criar novos pólos de força , desfazendo o par antitético prosaico / poético, para instituir como seu contrário o acadêmico , a epigonia, a repetição de fórmulas , “o próprio poético, quando , previamente estabelecido, mesmo cansado , quer se reproduzir ”. Acaba também , ainda no intuito de “ desalgemar o poético do poema ”, por esbarrar em “uma poesia cinematográfica , ou melhor , romanesca, ou melhor , machadiana ?...”, ou , então , acatando “as improvisações do ordinário ”, por deixar a poesia se impregnar do “ ritmo do falado , do dito , da mensagem cotidiana com mensagem eletrônica ”, emergindo do burburinho , suja de caos , grudada de pedaços de uma escuta transeunte descontextualizada. A macroestrutura de Escritos da Indiscernibilidade , composta de quatro partes que vão se desdobrando em câmara de ecos para registrar essa espécie de fotografia em movimento de um processo teórico-reflexivo de origem , desenvolvimento e incorporação poéticas , se apresenta como um desenho conceitual a um só tempo figurativo e abstrato , uma espécie de apreensão multifacetada e pulsante de uma trajetória de estabelecimento do poético no mundo , no escritor e no leitor . Tal desenho não se enquadra nas molduras dos símbolos , alegorias ou signos concretos mas quer projetar um ser de linguagem arrebatado pela dinâmica cósmica da vida . Daí a organicidade implícita de uma gênese que se entremostra nos Escritos da admiração ; de uma incorporação da alteridade no mesmo , disposta nos Escritos da íntima estranheza ; de uma circulação de “ fluxos de sentidos ” urbanos e cósmicos nos Escritos da sintaxe do trânsito ; e de uma vivência reciclada no mundo , pronta para sofrer novas leituras nos Escritos da vida . É que para Pucheu a questão filosófica do ser projeta-se, inevitavelmente, na linguagem . Assim como o ser é uma invenção do não-ser, a linguagem é uma invenção do silêncio . E apenas a aceitação da “ tensão conjunta dessas forças ”, a “impossibilidade de escolha entre o ser e o não-ser”, a promoção do “ silêncio à condição de linguagem ”, leva à vivência inventiva na fronteira , espaço em que podemos desautomatizar o mundo e nossas vidas , privilegiando “as implicações às explicações , a instabilidade à estabilidade ”, se deixando acolher “ por uma zona de esvaziamento, por uma zona de esquecimento , para poder ser surpreendido pelo impensado que habita silencioso e quer nos ocupar ”.
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