RESENHA: MARCIA CAVENDISH WNDERLEY |
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“A FRONTEIRA DESGUARNECIDA” DE ALBERTO PUCHEU Marcia Cavendish Wanderley Ando pelas ruas do Rio de Janeiro e sinto a cidade vivenciada em forma e conteúdo pela poesia de Alberto Pucheu. Passo a vê-la em toda a sua dramaticidade como um espaço onde a agonia do caos afasta qualquer idéia de conforto físico e emocional possível ao ser humano que já a experimentou enquanto comunidade, interação, sensação de pertencimento ou afetividade em relação aos outros seres que ali habitaram ou transitaram. Ao mesmo tempo, sinto o dinamismo que impulsiona sua desordem, irradiada pelos vergalhões ocultos dentro da alma pétrea dos edifícios, pelo ruído ensurdecedor do trânsito caótico e através das multidões caminhando dentro do barulho surdo que lhes é inerente. Um território onírico no qual o poeta encena seu pesadelo de ser um filho da cidade do Rio de Janeiro no século XXI. E sofre, tal como sofreu Baudelaire, na Paris do século XIX, uma “experiência de choque” (Benjamin - 1975) diante das transformações sociais e urbanas que marcaram sua época e repercutiram em sua obra: em Baudelaire, através da criação de uma contundente expressão poética onde a matéria baixa usada como substância (larvas e insetos de Une Charogne) é metáfora de dissolução e decrepitude sociais das multidões proletárias que formigavam na Paris do séc.XIX; em Pucheu, é o mecanismo de antropofagia da cidade em relação ao homem, e vice-versa, o veículo através do qual tensiona os limites da linguagem até transformá-la em convincente imagem caleidoscópica da vertigem urbana. Ambos relatam, como foi dito acima, uma experiência de choque em momentos diferentes de um mesmo processo histórico: no primeiro, como reação às crises da segunda revolução industrial do século XIX europeu; em Pucheu, nas vertigens pós-modernas sofridas pelos “filhos de uma cidade” que experimentam os desvarios balizadores dos grandes espaços urbanos do terceiro mundo. Vale acrescentar que esta última experiência é acrescida de elementos com os quais o século XIX jamais poderia sonhar. As permanentes ameaças de perigo também em escala global, descentradas e difusas, como é próprio do mundo pós-moderno, e o medo líquido (Bauman - 2006) por elas provocado, infiltram-se por todas as frestas da vida urbana. Ameaça e medo, que já são incorporados ao cotidiano em ponto máximo, serão destilados em versos onde o poeta pede socorro: Emito gritos de socorro , acaricio cabeças pendidas , festejo a entrada da primavera e pereço na calçada mais próxima Ou em palavras dispersas de poemas e prosa poética, denunciando os arranjos da cidade, acatando os acidentes como acasos celebrados (A Fronteira Desguarnecida - 1997) ... e que não adianta mudar de vida/ Todo lugar é Rio - (A vida é assim - 2001). Estilhas atravessam à revelia as ruas, balas perdidas em carne transeunte, escoriações no homem cometendo o cidadão... ao grito de assalto , às falanges da torcida em seu canto .... Uma bandeira se desfralda pela coxa, uma culatra se aloja na axila, uma cédula nasce do nariz. No vozerio dos arranjos da cidade, o vôo inesperado da sintaxe e do sentimento. Todos sabemos que nesta cidade aberta, organizada por uma multiplicidade de forças de poder e subsistemas sociais flutuantes, existe uma população sob permanente suspeição ou em perpétuo estado de vigilância onde o corpo político tornou-se um corpo criminoso. Uma sociedade de excluídos, como se vivêssemos em permanente “estado de exceção” implantado pelo Estado, cujo poder é disputado por controles informais a exemplo das milícias e do tráfico de drogas. Um poder que se impõe sobre tribos isoladas em guetos espaciais (favelas) tal e qual refugiados temerosos em seu próprio país e que às vezes se generaliza, cobrindo a população como um todo. Vivencio constantemente a luta entre a conquista de intimidade com a cidade e sua impossibilidade. A cidade, nos livros, se apresenta com elementos do Rio de Janeiro, cidade que habito e que me habita, diz Pucheu em uma entrevista nomeando a musa de sua criação. Esta simbiose entre homem e cidade, acionada pela aventura da linguagem é seu grande desejo, manifestado em vários gêneros literários. A leitura de A Fronteira Desguarnecida, que tem o subtítulo de Poesia Reunida 1993 - 2007 e inclui, além dos livros de poemas, sua prosa poética e entrevistas com depoimentos elucidativos a respeito do seu projeto poético, comprova o quanto o poeta consegue materializar-se na cidade sendo atravessado por ela, além de testemunhar a consangüinidade existente entre todas as expressões literárias ali contidas, todas herdeiras de um mesmo DNA que as atravessa promovendo uma espécie de continuidade entre as várias vozes. Todas impregnadas da comoção contida e contagiante que apresenta os fatos de um real cotidiano como se os víssemos pela primeira vez: o mesmo lixeiro varrendo a rua ontem, antes de ontem, desde de dois anos atrás .....tudo acontece agora pela primeira vez um ideal que vai apoderar-se de quem vive nas cidades gigantes, na malha de suas inúmeras relações entrelaçadas. Esta tentativa de criar um “continuum” entre poesia e prosa (Spleen de Paris) ao mesmo tempo em que agride a até então intocável matéria poética, nova forma aspirada pelo artista de reter a diversidade do real, é resultado de um mecanismo mental inconsciente que flagra, ao mesmo tempo em que produz, uma realidade em mutação. Mais tarde aparecerá em recursos que vão dos stream of counciusness muito bem representado em Joyce e em Virgínia Woolf, à conhecida enumeração caótica de imagens, termo usado por Spitzer (L. in Friedrich,H - 1978) . Em Pucheu, este programa é sugerido no próprio título, não casual,“A fronteira desguarnecida”, que propõe eliminar as distâncias não apenas entre realidade e linguagem, mas também entre gêneros e formas de conhecimento do mundo. E, realmente, é possível captar neste livro um parentesco poético entre os vários escritos que conservam todos um olhar perplexo diante de uma vida social exuberante e impossível de aprisionar por uma linguagem que não seja, ela própria, a matéria da qual fala. Parece-me que pensar poeticamente é se atrever ao pré-dito do pensamento, permitindo-lhe – silêncio - se apresentar nas palavras. No fundo de toda escrita pensante, é o silêncio, o encontrado. Mas este silêncio é a matéria robusta da linguagem, morada privilegiada do silêncio. [entrevista] Esta morada metamorfoseada em arranjos fabricados simultaneamente pelo olhar, por todos os sentidos, sentimentos, desejos, aproximações, afastamentos, irão desaguar em imagens completamente inéditas e presentificadas de uma cidade aberta, mas contraditoriamente obscura em sua luminosidade feérica.
Notas
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