A FRONTEIRA ENTRE POESIA E ENSAIO
dois livros – um de poemas e outro de crítica – marcam momento de virada do autor
Por Caio Meira
(publicado no Caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 22 de dezembro de 2007)
Por vezes nos esquecemos de que poesia é da ordem do inesgotável. Basta, porém, reler um livro ou poema já tantas vezes lido para lembrar o quanto as obras poéticas verdadeiras se mantêm copiosos de sentidos. Os poetas continuarão a peregrinar por todo o mundo, e jamais serão expulsos de qualquer cidade. Se, por exemplo, uma biblioteca inteira já foi escrita sobre e a partir da obra de Borges, outras bibliotecas, talvez infinitas, serão escritas pelos caminhos borgianos que sempre se bifurcarão. Ou ainda: a razão de Rimbaud ter abandonado a poesia se manterá como enigma permanente, graal inencontrável de poetas, leitores e pesquisadores de literatura — no silêncio rimbaudiano, um dos legados mais singulares e retornantes jamais deixado por algum poeta.
E o silêncio de Alberto Pucheu? Com A fronteira desguarnecida: poesia reunida 1993-2007, Pucheu afirma ter chegado ao fim de sua produção em poesia. Esse livro — que inclui os dois inéditos Escritos para o lado de dentro das lentes dos óculos e Performance para um corpo concentrado em sua voz — chega às livrarias simultaneamente a Pelo colorido, para além do cinzento, que reúne ensaios situados na indiscernível fronteira entre teoria, poema, drama, filosofia e prosa, como Roberto Corrêa dos Santos observa com agudeza no prefácio do livro. Esse duplo lançamento pretende sinalizar a passagem definitiva do poeta ao ensaísta. O que não significa que um tenha de morrer para o outro poder nascer. Quem já travou contato com algum dos livros do seu percurso poético propriamente dito já poderia adivinhar ali os primórdios e seguir os fios do progressivo desdobramento de um ensaísmo, assim como quando lermos seus ensaios — estes e os vindouros — não conseguiremos afastar de qualquer deles a presença efetiva do poeta.
Indiscernibilidade é mais do que um leitmotiv tanto da poética quanto da ensaística pucheana: sua escrita, que aos poucos foi se tornando híbrida, é agora concebida, formal e intimamente, a partir de seu aspecto indiscernível. Ao intitular o seu livro anterior de Escritos da indiscernibilidade (Azougue, 2003), Pucheu já demarcava uma escrita em direção ao espaço da fronteira desguarnecida, não mais para escolher um dos lados da fronteira, mas para habitá-la, ou habitar essa terceira margem. Indiscernível deve ser lido no sentido mais forte do termo, o de coisas ou objetos cuja indiscernibilidade deriva do fato de serem intrínsecos, isto é, que só possam se dar de forma conjunta — quando um não pode ser concebido sem o outro. O poeta, aqui, não faz sentido sem o ensaísta e vice-versa. Trata-se de incorporar e manter o texto em caráter aporético: se, como aponta Jacques Roubaud, a tarefa primeira do poeta (ou a do ensaísta-poeta) é a de devolver a poesia à sua origem, esse principiar sempre será por definição indiscernível: mítico, poético, filosófico, histórico, contemplativo, teórico, ficcional.
Se a pessoa física lida cotidianamente com sua inelutável mortalidade, o poeta é imortal, e basta ler qualquer conto machadiano para sentir sua presença na nossa cultura e na nossa vida. Mesmo que o Alberto Pucheu portador da carteira de identidade número tal nunca mais publique um livro de poesia ou mesmo um poema, o poeta Alberto Pucheu estará virtualmente presente em qualquer ensaio, crítica ou resenha que o primeiro vier a publicar. Não há, portanto, a interrupção de um percurso, mas o transe agonístico entre poeta e ensaísta; ambos estarão presentes, tanto indiscerníveis quanto intrínsecos.
Quando um poeta silencia, suas palavras se encorpam e se relançam de forma mais vigorosa a partir desse silêncio. E já que mencionei o silêncio de Rimbaud, deve-se marcar aqui uma diferença importante: ao contrário do poeta francês (que disse acerca da própria poesia: “não penso mais nisso”) ou de outro “desistente” notório, Raduan Nassar (que só aceita dar entrevistas se não for abordado qualquer tema literário), Pucheu “deixa de ser poeta” para poder, a partir dos determinantes singulares e atuais, mergulhar com mais intensidade nos vetores de força de sua escrita, à qual só chamamos de ensaística se dermos ao termo a devida dimensão criadora.
E este ensaísta não terá nenhum problema em confirmar a vertente poético de seus textos teóricos. Tome-se, por exemplo, o primeiro texto de Pelo colorido, para além do cinzento, no qual Pucheu reivindica e toma para o pensamento crítico e teórico o colorido poético (leia-se criador) tão recusado pela imensa maioria cinzenta de nossos críticos de literatura. Diagnosticando nestes últimos que o pudor e o recato são muitas vezes sintomas encobridores da arrogância ocultada sob a máscara de uma suposta neutralidade ou mesmo a manifestação da ignorância do enraizamento desejante de toda e qualquer enunciação, ele convida a todos os que pensam literatura a darem o último passo em direção ao lado criador da crítica, preenchendo de iluminuras coloridas o espaço de pegada — o agon — entre a obra literária e seu leitor/crítico/contemplador. Está aí o mesmo desgarnecimento de fronteiras da obra poética: do mesmo modo que o poeta não recusou a face pensante de sua poesia, não será o ensaísta quem irá afastar o lado criador do seu pensamento.
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