RESENHA: ARTUR DE VARGAS GIORGI |
---|
O CONSENSO DIFERIDO resenha publicada no Diário Catarinense, em 1 de novembro de 2008, Manoel Ricardo de Lima é um poeta que, em seus textos críticos - textos construídos, na verdade, como oportunidades de conversa, este gesto cada vez mais raro na anestesia do dia-a-dia -, algumas vezes retorna a um ponto que agora tomo de empréstimo, para também nele teimar e me arriscar: o ponto do erro, do risco do erro como alento possível da poesia. E parto desse risco para armar com ele minha suspeita sobre algumas linhas de Alberto Pucheu. Suspeita, eu repito; porque dizer que um poeta orienta sua escrita pelo erro é já, desde o início, caminhar em errância e desconfiar da própria leitura. Por mais que eu diga, ainda: nos temas que retornam, escapam, desdobram-se sobre si (a cidade e o cotidiano, o poético e o filosófico, a linguagem e a palavra), Pucheu traça uma escrita precisa. Se assumo que o erro a rege, eu - que tomo sua escrita em reescritura na leitura que faço - posso pouco mais que reafirmá-lo. Com os olhos em A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007), retenho aos poucos, firmando contato, isto que se esquiva: qualquer limite protegido, qualquer traçado fixo ou certeza envolta em armadura. Para ficar mais clara a experiência, em prazer e agrura, primeiro uma imagem do vazio; no caso, a cidade em suas margens, um dos centros de Pucheu, seu Rio em Pista do bem-te-vi, Urca: "Nos acostumamos / com os fragmentos / nas avenidas // mas no dia / de sol / quando // o universo / é um círculo azul / voltado para dentro // [...] // por entre os dedos / escapa / a própria mão / (e os dedos). // por entre a mão / escapa / o próprio braço / (e a mão). // por entre o braço / escapa / o próprio corpo / (e o braço). // por entre o corpo / escapa / o próprio ar / (e o corpo). // por entre o ar / escapa / o próprio céu / (e o ar). // por entre o céu / escapa / a própria mão / (e os dedos)". E assim fixo um ponto: já não sei bem o que fica e o que me escapa. O que é em si alguma definição de poesia. Desconfiar torna-se, então, uma forma de fincar o pé, para reter o risco. Este mesmo, que, se transitivo, exige complementos simultâneos: risco de perder e encontrar; de calar e dizer; de não conhecer e, não conhecendo, saber; risco, enfim, de errar. Leio Pucheu, e as palavras que eu tomo podem sabotar-me, largar-me à deriva. Esta, contudo, a forma de sua poesia se fazer presente, sua resistência. Para que em mim fique pelo resto: de um risco, o erro feito certeza, feito "a vida, / a nossa espreita em cada esquina". Pucheu coloca-se entre a filosofia e a poesia. Não apenas por sua formação (mestrado em Filosofia, doutorado em Letras), mas, principalmente, por sua prática: a da escrita como vertigem. Pois, neste caminho cerzido que eu sigo, Pucheu está bem próximo ao que Giorgio Agamben afirma ao final de O fim do poema: "Wittgenstein escreveu, certa vez, que a filosofia deve-se apenas propriamente poetá-la [...]. Talvez a prosa filosófica, ao fazer-se como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso, se arrisque a decair na banalidade, se arrisque, portanto, a faltar com o pensamento. Quanto à poesia, pode-se dizer, ao contrário, que está ameaçada por um excesso de tensão e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein, que a a poesia deve-se apenas propriamente filosofá-la". Assim como encontro Pucheu ligado ao que diz Jean-Luc Nancy em Fazer, a poesia: "Esta diferença, todavia, não pode resolver-se numa distinção da poesia e da filosofia, uma vez que a poesia não aceita ser circunscrita a um gênero do discurso, e uma vez que Platão pode estar repleto de poesia. Filosofia versus poesia não constitui uma oposição. Uma faz a dificuldade da outra. Juntas, são a própria dificuldade: de fazer sentido". Sim, fazer sentido é sempre um risco. Sobretudo quando a fronteira entre poesia e filosofia se faz permeável, e o que antes havia enquanto separação ou limite é então atravessado pelo contágio. Neste caso - poesia ou filosofia - , todo sentido feito, desfeito em seguida está. Cada sentido pleno apenas no que alcança o erro: aquilo que lhe escapa, o que resta não dito e permanece movente. "Qualquer estrada conduz / o centro / em sua extensão", escreve Pucheu. De modo que cada passo torna-se o único lugar onde a poesia vinga. Como num castelo de areia e linguagem: a palavra desfaz-se matéria, constrói-se miragem. Em Escritos da Admiração, Pucheu concilia a conversa com este fragmento: "... o que, agora, tento. A partir de uma abertura, descobrir relações de mestiçagens entre poesia e filosofia, manusear uma matéria disforme que supere a abordagem dos pólos estanques, dar-lhe voz". Para em outro tom, retesando a linha em Escritos da Rebelião, se ouriçar em versos: "[...] com poetas, / menosprezá-los mediante o pensamento; com pensadores, / menosprezá-los mediante a poesia". Como a dizer: não há abrigo; em desacerto, os sentidos dessa "matéria disforme" são feitos, sobretudo, dos seus desvãos: esquecimentos, imprecisões com frestas por onde penetram réstias, pontos de fuga, de encontro, às vezes vagos como os terrenos Na Cidade Aberta, Escritos: "Vagarosamente as linhas / mapeiam espaços / delineiam ruas e deixam / baldios". Terreno baldio: espaço de abandono, de vacância do sentido; margem para o engano entre a solidez das convenções. É onde encontro, enfim, Alberto Pucheu: íntimo desse erro que interessa tanto a Manoel Ricardo de Lima quanto, de certa forma, a Agamben e a Jean-Luc Nancy. Porque Pucheu não recusa, mas assume o risco. Joga com o erro, pelo erro, apanhando as palavras para não ser capturado. Bem-vindos os erros que adiam o consenso e criam singularidades. No caso de Alberto Pucheu, as linhas (felizmente) conduzem por um caminho esquivo, certo de cruzamentos e labirintos; e, no entanto, ainda assim sinalizam a abertura para um respiro possível - seja na cidade ou no branco da página. Abertura que dura enquanto me escapa por entre os dedos.
ARTUR DE VARGAS GIORGI |
---|