RESENHA: SÉRGIO NAZAR DAVI |
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ECOMETRIA DO SILÊNCIO
(na revista Idioma , ano XX, número 21, do Instituto de Letras da UERJ)
Uma resenha não é nunca , nem poderia ser de outro modo , mesmo que seu autor o quisesse, um juízo imparcial . Escrever é sempre tomar uma posição . É o que faço aqui . Mas um poeta também precisa fazê-lo, precisa saber o que fazer com as palavras , e dar expressão a isto : a linguagem não é mero instrumento de comunicação . Isto é: fazer poesia é também contornar insistentemente algo que nos marca como humanos a falta . Mas não basta mover mundos e fundos , revirar o estratificado, bater-se pungentemente contra as idéias estabelecidas. É preciso , no meu modo de ver , atravessar também o Belo , ou melhor , certa idéia ou certas idéias do que seja o Belo , ir também além dele. Isto é: poesia não é beletrismo, não é engenharia de palavras , não é chá de senhoras . E ninguém é dono da poesia . E isto porque há muitas maneiras de ser sozinho . Alberto Pucheu abre Ecometria do silêncio com : Ser poeta não é ambição minha ./ É a minha maneira de estar sozinho . A epígrafe ficou-me nos ouvidos , martelando. No final , a pergunta : como um poeta tão urbano , tão perdido nas trilhas da cidade , escolhe versos de Caeiro, o pastor amoroso de Pessoa , para gravá-los justamente na portada de seu livro em epígrafe ? E eu já quero responder de uma vez : porque Pucheu reinventa uma paisagem , que lhe entra pelo corpo , paisagem que não é pra ser admirada nem explicada. A realidade pra ele é só e unicamente realidade psíquica . E é assim que é mesmo pra todos nós . Só que Pucheu faz disso poesia , sonhando, por exemplo , com a adequação do rinoceronte , o corpo ... na medida exata do corpo . E contrapõe: E o meu [ corpo ] tão distante , perdido pela multidão , pelos cantos das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde anda (...) ( Poema ungulado , 2). Por onde anda , o mundo intromete-se no corpo : um gavião voa pelo intestino que se alarga/ à sua passagem , uma cabra rumina meu coração / vibrante como capim ao vento , nuvens / se apropriam de meu cérebro , vagam/ em minha cabeça , intrometem-se pelo tórax ,/ pela pélvis, pelos pés , pelo ar (...) (A 1600 metros ). Não sei exatamente o que quer dizer uma epígrafe . À primeira leitura , no entanto , mais coerente talvez fosse meter um Álvaro de Campos na abertura . Mas não é. O livro fica mais lindo assim como está. E é assim que gosto dele. Pucheu abre um espaço todo seu , sem imitar ninguém , trafegando nisto que foi para Pessoa uma maldição vivida na carne : a dor de existir .
Sol que desnorteia minha vida , braçada de cereais erguida no espaço como fios de ouro sustentados pelo vento , iluminai estas pálpebras pesadas de nuvens , fazei-me aceitar a maldição de pensar o que ninguém pensa , de sentir o que não se sente, deixai a vela do ócio conduzir este barco para o mistério que estala em cada peito extraviado! ( Último poema de Tonio Kröger)
Em Pequeno conto americano com sotaque brasileiro , Pucheu inverte mais uma vez as perspectivas banais e segue nas profundezas, misturando lugares , parando o tempo , vivendo por si mesmo e pelos outros . Onde talvez houvesse o estranho , acerca-se do mesmo . O mesmo , não o banal . Onde talvez houvesse a bestialidade, Pucheu contorna aquilo que sem dúvida está no seu livro como um vetor . Refiro-me ao que repetidas vezes aparece nos seus versos como intimidade .
Lembro-me também de um haxixe fumado num hotel em Barcelona (numa espelunca barata de Barcelona),
É preciso não entender para aprender , diz-nos. Afinal é impossível não lembrar , pensar é estar doente dos olhos (Caeiro). É preciso esquecer-se de si pela cidade para conseguir intimidade com o silêncio . Silêncio para Pucheu só existe enquanto visada: é o corpo da mulher amada , a concha de um molusco , mas é também o exílio inexistente da caverna (A 1600 metros ), um homem lendo, numa cabana do ermo bosque de bambu (O mundo , a nanquim ), que , entretanto , não pode ser encontrado entre os traços que vão se apagando no nanquim de 1448, estampado na página 22. Intimidade é também esquecimento : Não tenho por lugar / turísticos belvederes , mas o emaranhado das ruas populosas/ e recantos por onde encontro o esquecimento (Codicilo). Em direção ao esquecimento , circunscrever o humano nos limites do inumano :
(...) Continuarei a caminhar por quantas horas forem necessárias até expirar o derradeiro resquício de incômodo , até secar a última gota do medo , até que o grito não venha do desajuste , mas do inumano explícito em cada paisagem .
Pucheu, cantor de uma paisagem que não pode dar sentido à vida , pastor sem cajado na desordem do corpo e da cidade . No silêncio , no esquecimento , na paisagem que é só sua , nas palavras soletradas em versos que se misturam em prosa , inadaptados à própria expressão poética , nos pedaços de memória , na experiência cotidiana , Pucheu escreve um livro sobre o corpo . Sobre a solidão do corpo querendo esquecer-se de si mesmo e do que tem de humano , e do que faz de si mesmo corpo e não um organismo regido por leis inabaláveis . Pucheu dá expressão poética a este anseio humano de ser nada , manchando-o com um sol negro . E nomeando-o, uma vez que só existe mesmo enquanto anseio . Um pequeno fio o separa, o faz recuar talvez , ou melhor ainda : lhe permite certa indiferença para atravessar o jogo de tudo ou nada em que Campos joga seu corpo e suas fichas . Entre Campos e Caeiro, Pucheu ergue seu pequeno mundo , seu mundo singular , desde A fronteira desguarnecida (Sette Letras , 1997). Este novo livro , no entanto , é mais afirmativo . Lembro: Escrevo o poema de uma nova geração (...) (Nascido na segunda metade dos anos 60). Isto também se pode esperar de um poeta : que ele , à frente de qualquer outra pessoa , aposte no que ali vai como letra impressa . Defender o que do ponto de vista subjetivo vale ser defendido é o que , de resto , faço eu também aqui , como leitor atento que sempre fui de sua poesia .
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