A GENTE SE ENCONTRA NO MARACANÃ PARA DISCUTIR POESIA, OU AS BALAS PERDIDAS QUE NOS ACERTAM
(Por Fabrício Carpinejar, na revista online Redemoinho www.redemoinho.com , número 6, dezembro de 2001)
Alberto Pucheu, 35, é de uma linhagem que não separa a poesia da vida. Olha simultaneamente à esquerda e à direita, para "a paisagem e o livro". Evita a faixa de segurança: tem conhecimento de causa que a poesia serve para dizer o que não somos, ao contrário dela decretar um perfil definitivo. Com cinco volumes publicados (Na Cidade Aberta, Escritos da Fragmentação, A Fronteira Desguarnecida, Ecometria do Silêncio), une a tradição reflexiva clássica com o despojamento verbal e andamento coloquial modernista. Representa um filósofo leigo, cujo sistema de pensamento é constituído de esgotos, praias, favelas, ruínas e arranha-céus. Obsessivo, temas voltam à tona confirmando uma seqüência antológica entre seus livros.
A vida é assim (63 páginas, 2001), seu lançamento editado pelo selo Azougue, tem um viés digno da escola de cinema italiano neo-realista. "Entro, com os pés descalços, na cidade aberta." Além das coincidências, cidade aberta é um dos filmes mais conhecidos dos anos 50 de Roberto Rosselini e o título de estréia de Pucheu.
Entretanto, o poeta não quer imitar a realidade, mas transfigurá-la. É um hiper-realista, com um toque macabro de imaginário para extrair o melhor e o pior dos dias. Decantado em três capítulos, a obra contém treze poemas em versos livres, três crônicas poéticas e uma tradução de um poema inexistente. Em linhas gerais, apresenta um homem na crise dos trinta anos, que avalia com pessimismo as possibilidades de seu futuro.
O sumário já permite perceber que estamos diante de um texto especial. Há uma mistura doentia entre prosa e poesia, ambas alicerçando a expansão e elasticidade da linguagem em direção ao fluxo ininterrupto do cotidiano. Tal orquestra dividindo o palco com cantores de rap. "Difícil ficar ileso aos verdes da manhã, ao trabalho diário, aos acontecimentos que, mesmo corriqueiros, me contaminam."
Com sotaque carioca e apelo universal, o escritor enquadra as miudezas com luz natural e foco crítico. A realidade o contagia, desregulando o relógio biológico. Tudo passa para permanecer. A intensidade da sonoplastia revela-se no pendor discursivo e antiformalista, fiel ao sons da rua. Capta inclusive os ruídos e os choques, incorporando ao vocabulário termos abruptos e pouco poéticos, a exemplo de "hidropisia" e "rinocerôntica". Em seu caldeirão de timbres, fotografa o vaivém de vendedores entre o trabalho e o lazer.
Não existe uma limpeza teórica, uma única interlocução e nível de linguagem. São vários estrados sonoros e visuais, das classes A à E, que se complementam. A diferença é que o autor medita com serenidade, tem consciência dos seus alvos. Não queima cartuchos ao léu e ao acaso. "Recolho do mundo uns tiros de espanto". É um atirador de elite, disposto a abrir as fronteiras da cidade e do próprio canto.
Ao pontuar "todo lugar é Rio", também afirma que todo lugar é poesia. O zelador com radinho de pilha, o entregador de lista telefônica e o varredor de rua são catalisadores da eletricidade de suas observações. A fluência descritiva e irônica lembra Tabacaria de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. A visão não é a de um ponto fixo, de alguém parado em uma janela, e sim da janela em movimento de um automóvel. Pessoas desconhecidas com outros hábitos contribuem para discutir a validade de uma biografia. Não existe encontros, mas esbarros e acidentes. "Acataria sua espontaneidade de querer ser o que não se é (para só aí ser)." Abusando dos paradoxos e da dialética, ocorre a desfragmentação do sujeito sem uma casa capaz de centrar seu repouso. "A cidade me habita." Ele reside no trânsito, apartado da individualidade de um lar.
A velocidade é identificada pelas metáforas de deslize. Algo escapa, empurra para frente, impede a reprise. É um movimento que não aceita marcha a ré, um "arrastar contínuo" pela dispersiva multidão. A ourivesaria de A vida é assim cintila na transformações de lugares comuns. O que poderia ser "alheios a tudo" fica sendo "alheios a nada", cristalizando a avidez da procura e a incontinência dos olhos.
Os versos de "Meditação à beira da morte" concentram as principais virtudes do conjunto, uma visada filosófica sobre o trivial e o excesso de memória que nos distrai. "Apenas o sopro,/ último reduto que ainda me resta, resiste/ na tensão do que falo, no negativo de minha própria voz./ Só terei o esquecimento de mim, esperando esquecer/ até o esquecimento..."
Apesar da companhia e das inúmeras presenças que perpassam a viagem, experimenta-se um isolamento que inviabiliza a verdadeira solidão. Porque o isolamento é uma derivação coletiva, marcada pela vivência passiva do espectador, não proporcionando aquela função ativa de ator e protagonista que caracteriza – para bem ou para o mal - a solidão. Pucheu traz um mundo povoado de isolamentos protegidos, ora pelos e-mails, ora pelos chats (Arranjo para Mensagens Eletrônicas e Arranjo para Sala de Conversas).
Pressente-se uma lírica que se afirma pela negação, com a absorção de expressões populares como "me inclui fora dessa", "vaso ruim não quebra" e "mostrar pra essa gente como é que se faz". As "metáforas mortas" - os ditos folclóricos - intercalam as metáforas vivas e pessoais, fortalecendo os instantes de revelação.
Entre as vozes viáveis, duas se sobressaem na poesia: a que pretende dizer o máximo mediante uma aparente onisciência e a que reconhece a impossibilidade de abarcar o universo, sendo o poema maior quando silencia. Pucheu é da segunda corrente. Diz metade do que ambicionava proclamar, sempre deixando a impressão que as palavras não foram capazes de exprimir o que desejava. É uma deliberada inconclusão. "As palavras me fogem." Refratário à idealização, sugere, incita e provoca o leitor, esperando sua reação. "Não vivemos da melhor maneira: mas da maneira possível." A agressão é seu jeito de humanizar e reivindicar afeto.
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