UM POETA EM ATO PERMANENTE DE BUSCA, DE VERTIGEM E DE DESCOBERTA
Pucheu quer estremecer as noções de próprio e alheio com seus versos
(Resenha do livro A vida é assim, no Prosa & Verso, do Globo, em 12 de janeiro de 2002)
Todo escritor cedo ou tarde enfrenta uma crise. Seja em sua motivação, seja nos resultados, na maior parte dos casos trata-se da própria vida que está em jogo. A criação deixa de ser um jorro; ausência, aridez, vazio, nada — escrever torna-se árduo. Muitos não suportam esse crack-up magistralmente descrito e enfrentado por F. S. Fitzgerald, e literalmente soçobram. Há sempre a alternativa de seguir em frente, abandonando, porém, a intensidade e o vigor implicados no ato criador. Poucos conseguem mergulhar em seu vazio, fazendo desse embate sua obra. É quando a arte é mais arte: reviramento, transformação, alcance de regiões raramente exploradas — as dos abismos que margeiam a criação.
O quinto livro de Alberto Pucheu, "A vida é assim", traz o belo resultado desse confronto íntimo com o próprio abismo. A começar pelo título, que sob aparência banal oculta uma constatação — esse delicioso galicismo que significa dar-se conta de algo por uma experiência direta da realidade, ou, no caso da poesia, acolher a realidade como ausência. A constatação (retornante, diz um poema) é fruto da convivência do escritor com o que experimenta como destino, o ato de escrever. Ser escritor, no caso de Pucheu, é levar a ferro e fogo o princípio de que fazer poesia é ato permanente de busca, que implica abandonar o já conquistado por um estado quase contínuo de descoberta.
Diante do vazio, dos prêmios e armadilhas
Sentir-se condenado a renunciar, única maneira de estabelecer uma poética da habitação, significa deparar-se freqüentemente com o próprio vazio. E são mais profundas as conseqüências dessa determinação quando elas se propagam por toda a vida: morar, alimentar-se, amar, ganhar o sustento, todas essas coisas que fustigam quem se entrega a uma atividade que, como se sabe, não é geradora de capital. "A vida é assim" traduz o tapa da vida na cara do escritor. Essa constatação está presente em todos os poemas do livro, principalmente nos da primeira parte ("Não adianta pensar em mudar de vida (…) a vida tem, a nossa revelia, seus prêmios e armadilhas para distribuir").
Tudo acontece sempre pela primeira vez, dos gestos mais banais às decisões que envolvem o destino: a vida sempre nos devolve ao ponto de partida, aonde os sentidos têm de ser recriados e as velhas respostas não servem. Se por vezes o escritor alimenta a ilusão de que a vida dá uma trégua, ou que a escrita lhe traz algum conforto ("Não fosse a escrita, eu seria um tronco"), ele logo percebe que terá de recriar mais esse sentido ("E não adianta pensar em se entregar ainda mais à vida").
A posição da escuta no fogo cruzado das ruas
Na segunda parte do livro, Pucheu abandona até mesmo a posição de sujeito da escrita —- por mais fragmentada que ela já fosse —- e se arrisca a ocupar a de agente: tornando mais radical algo que já estava em germe no poema "Na cidade aberta, n° 3", de seu primeiro livro ("Na cidade aberta", 1993), o poeta se transmuda em escuta, em arranjo. O poema não é mais encontrado nos limbos interiores ou em sua comunicação com o exterior, mas na própria vertigem do real, quando o que está em questão não é mais a emissão de imagens, frases ou palavras, mas a posição da escuta em meio ao fogo cruzado das ruas, das salas de conversa virtuais, das mensagens que misturam confissões dolorosas e reconhecimento de destinos. Não se trata da idéia, já envelhecida, da morte do autor. No caso de Pucheu, o autor não se quer morto, mas moribundo, ferido pelas balas perdidas dos transeuntes, movido e comovido pelas constatações acerca da vida nas mensagens em sua caixa-postal, virtualizado pela freqüentação de salas de conversa onde só se adentra através da vacilação das idéias de presença e ausência.
O moribundo ocupa sempre uma posição equívoca, já sem desejo ou propósito reconhecível, no extremo final de um caminho, mas também na beirada de mais um começo, porém desconhecido. O enigma proposto pela escuta ativa do poeta é o seguinte: o que é alheio e o que é próprio? Mais do que isso, são as próprias noções de próprio e de alheio que Pucheu quer estremecer.
A condição de eterno morrente do poeta leva a cabo uma inquietação de força constante na poética pucheana, que é a de experimentar o quanto de não-poético cabe no poético (ou vice-versa), justamente por acreditar que o poético só se dá nos limites mais extremos, nas fronteiras desguarnecidas. Estranhamente, a busca do poético em seus limites e fronteiras nunca aponta para um futuro possível, muito menos para um saudosismo, mas para um presente radical, sob a égide de uma modernidade imperativa.
Talvez seja essa uma excelente resposta à convocação rimbaudiana: é preciso ser absolutamente moderno. A virtude maior de Pucheu é justamente ter entendido o termo "moderno" em seu sentido primordial: estar o mais próximo possível do tempo presente.
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