TRAVESSIA DO SILÊNCIO , TRAVESSIA DA LINGUAGEM
“ Nunca me reconheci em nenhuma frase ...” lê-se em Ecometria do silêncio . Para Alberto Pucheu, quem não se reconhece em nenhuma frase , isto é, em nenhum modo de falar , é o poeta enquanto poeta . Por que ? Porque poeta é justamente aquele que , longe de buscar amparo em reconhecimentos , deixa acontecer , ou melhor , fomenta -- em si mesmo , no mundo e nas palavras -- o desamparo do desconhecido , do irreconhecível , do inominável , do espantoso , do admirável . É assim que , no belo “ Último poema de Tonio Kröger”, ele pede ao sol que o faça “ aceitar a maldição de pensar o que ninguém pensa , de sentir o que não se sente...” Assim também , são-lhe indiferentes as próprias frases em que ele poderia reconhecer-se, a menos que consiga , desagrilhoando-as justamente dos esquemas anti-poéticos do reconhecimento ( tal como faz em “ Poema para a maior audiência do país ”, por exemplo ), trazer novamente à tona o enigma que lhes é constitutivo.
Seria redundante chamar tal poesia de experimental , uma vez que , para Pucheu, toda poesia autêntica , ultrapassando o limite do dizível e do nominável, não pode ser senão experimental. Contudo , não seria possível sem fissuras inserir essa poesia na tradição experimentalista dominante no Brasil, pois , ao contrário , por exemplo , do construtivismo, ela não privilegia os experimentos formais , laboratoriais e assépticos . Seria também impróprio chamar suas experimentações de “ estéticas ”. De fato , todo esteticismo , experimental ou conservador , é expressamente rejeitado por ele : “ desprezo a frieza da perfeição , pela ausência do risco , superado, pela necessidade do acerto e da completude blindada”, diz logo o primeiro poema do livro .
A experimentação que se encontra em Ecometria do silêncio se dá na forma de surpreendentes , precisos , finos e bem urdidos cruzamentos , enxertos , deslocamentos, condensações , transformações, contaminações, distorções etc. No nível mais imediato , por exemplo , não é possível qualificar os poemas deste livro nem como versos nem como prosa , pois , de modo anfíbio , eles possuem características tanto de versos quanto de prosa . Ora , de acordo com “Admirário”, “se inclassificável, é poesia ”. Longe de temer a aporia e inclassificabilidade última da vida , o poeta diz sim para ela e a encarna.
Ao rejeitar os fáceis esquemas do reconhecimento, o poeta enquanto poeta despreza também as armadilhas e consolações oferecidas pela vida social, que visam reduzir a denominadores comuns e inócuos aquilo que se dá originalmente feito experiência singular e inquietante. Ele é, em verdade, o mais solitário dos homens. “Nenhuma initimidade que não seja com o estranhamento”. A solidão constitui um dos temas mais constantes de Ecometria do silêncio . Como porém não se trata de uma solidão ôntica, psicológica, mas da solidão ontológica do criador, ela é coextensiva a algo que é, prima facie , o seu oposto. “Apesar de solitária, aberta a múltiplas freqüentações; apesar de aberta a múltiplas freqüentações, solitária - a voz que me atravessa”. A solidão não significa que o poeta cultive a sua interioridade subjetiva nem implica qualquer fechamento para o mundo externo. Ao contrário: ele mantém desguarnecida a fronteira que o separa do cosmo. Sua solidão é correlata da singularidade do espantoso processo de assimilação osmótica que se dá entre ele e os outros entes.
Esse processo se manifesta, por exemplo, na obsessiva e ambivalente relação do poeta com a cidade em que, por um lado ele está sozinho no meio da multidão, “à margem / do resultado de todas as coisas”, mas, por outro lado, seu corpo adere ao “jeito do asfalto e das calçadas, o corpo manuseado pela / rebelião sísmica e descontínua da cidade”, segundo as palavras de “Poema para carregar no bolso”. Mas, a meu ver, é em “Poema ungulado nº 2” que melhor se encontra realizado esse fenômeno. Nele, o rinoceronte, esse animal maciço cuja couraça pesada e cujo chifre formidável parecem torná-lo um outsider , um pária no seio da própria natureza, de modo que volta e meia serve de símbolo do absurdo, é invejado pelo poeta porque “nenhuma gordura empanturra o [seu] corpo”. Digamos (se me permitirem um pequeno flerte com a terminologia aristotélica) que aqui a gordura é potência, dynamis ; e o rinoceronte é, ao contrário, pura atualidade, pura enérgeia ... feito uma improvável versão de uma faca só lâmina. O corpo do poeta, por outro lado, “tão distante, perdido pela multidão, pelos cantos / das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde / anda...” À medida porém que o poeta continua a se comparar desvantajosamente com o rinoceronte, acaba por se metamorfosear, ante os olhos da mente dos seus leitores, dolorosa e gloriosamente, no próprio rinoceronte.
O primeiro poema de Ecometria do silêncio fala de solidão. “Tomo posição: meço, com o eco do silêncio pronunciado, a distância que separa de mim o arredor que blasona”. É evidentemente essa a leitura mais imediata do título. Mas se, como Pucheu acredita, devemos tomar os poemas como enigmas, esse título pode e deve ser lido de outras maneiras. Consideremos, por exemplo, os dois componentes da palavra ecometria , isto é, eco e metria . Na primeira leitura, eco foi tomado como a transcrição da palavra grega echo , que quer dizer justamente eco . Eco porém pode também ser tomado como a transcrição da palavra grega oikos , que quer dizer casa ou morada. É assim a sua acepção, por exemplo, nas palavras economia ou ecologia . Metria , por outro lado, significa em primeiro lugar mensuração . Já aqui teríamos “a mensuração da morada do silêncio”. Pucheu mesmo, porém, num belo ensaio entitulado “Escritos de admiração” (in Poesia e filosofia , org. p. Alberto Pucheu, ed. Sette Letras, 1998), mostrara que a palavra metron deve antes ser entendida como “a encruzilhada necessária em que acontece a contínua eclosão do real”. De fato, em Homero, o verbo metreo quer dizer atravessar ou cruzar . Metria é portanto a travessia ou o cruzamento. Conseqüentemente, podemos ler o título Ecometria do silêncio como “A travessia da morada do silêncio”. Ora, para Pucheu, é a linguagem a morada privilegiada do silêncio. Com efeito, em “Naufrágio na Sala Cecília Meireles”, encontra-se o que pode ser tomado como a divisa de tal poesia: “Jamais escutamos o silêncio sem o dizer”. Um dos sentidos de Ecometria do silêncio é portanto Travessia da linguagem . A linguagem - que não é nenhuma língua dada mas antes a própria produtividade cosmogônica - é não apenas o objeto mas o sujeito dessa brilhante travessia.
Antonio Cicero