Gramatofilia
Não há palavra. Para dizer o real na linguagem, a linguagem no real, não há palavra. Se algum dia um escritor disser essa palavra, o mundo enlouquece. Em um segundo, todos viraríamos psicóticos. E é por não ser possível dizê-la, lembrava Barthes, que há a literatura, sua tensão, sua utopia, seu fracasso essencial. Não há a palavra. Mas há palavras - e seus arranjos imprevistos que se dirigem à transgressão dessa lei constitutiva. Dirigem-se, tensionam-se e, embora fracassem, ao mesmo tempo conseguem trazer à superfície um eco enigmático da palavra proibida. Cada vez que ouvimos esse eco, o mundo balança como a linha vermelha pela passagem dos carros, como o Maracanã pela alegria dos homens.
Roubar esse eco das entranhas do interdito é uma das tarefas principais a que se consagra a poesia de Alberto Pucheu. E aqui começamos e adentrar sua singularidade: é que é precisamente essa tarefa a determinação do que a própria obra postula como sendo - o poético. Eis um eco: “Dizer o que não pode ser dito, nomear o inominável, eis o enigma do poético ao qual o escritor dedica seu voto. No momento em que o inescritível ganha corpo na palavra ou, se quisermos, no momento em que por ela é dado percebê-lo, dá-se a realização do poético”. Eis outro, diverso, da mesma impossível palavra: “A paisagem deposita uma árvore no silêncio / de meu corpo, entre a pleura e o baço, / um gavião voa pelo intestino que se alarga / à sua passagem, uma cabra rumina meu coração”. Assim, seja por via do conceito, seja por via da imagem, os arranjos devem falar, a seu modo (im)possível, teorizando-a ou encenando-a, essa encruzilhada do real com a linguagem, essa indiscernibilidade.
Daí Pucheu lembrar, em mais de uma ocasião, a célebre passagem da Poética, de Aristóteles, em que o filósofo afirmava a impertinência de se denominar poético um tratado de medicina em versos. Não, o verso não é, em princípio, poético, precisamente porque o poético é aquilo que não se dá a princípio. O que é o poético - essa negatividade fundamental, que o saldo das vanguardas tornou impreterível à consciência moderna -, Pucheu, entretanto, determina-o, para os fins específicos de sua própria poética: é “a solidão das frases desconhecidas”, são os arranjos inusitados, é a linguagem em estado de alteridade, é ter “o indecantável por divisa”, é formular ou encenar a palavra “criadora contígua do real”. Em ritmos e imagens - ou em abstrações teóricas. É por isso que A fronteira desguarnecida impôs-se como título dessa obra reunida: porque se trata de um arranjo que encerra, simultaneamente, dois dos movimentos principais dessa poética: a indistinção entre real e linguagem, corpo e cidade, carne e máquina, e a indistinção entre os gêneros, poesia e filosofia, com seus respectivos corolários, imaginação e conceito, ora subordinados à indiscernibilidade do poético determinado por outros alcances.
Mas toda essa movimentação da linguagem rumo ao imprevisto e ao real está vinculada, e talvez mesmo submetida, àquilo que é o centro ético do conjunto da obra: uma inabalável confiança na escrita, sua sempre renovada afirmação. Trata-se de uma gramatofilia. Mas qual o sentido dessa amizade fiel à escrita, se “escrever desconhece redenção”, se escrever é engajar-se naquele interminable, incessant de que falava Blanchot? É que a saúde semiológica desses escritos, de onde deduz-se uma saúde existencial, reside numa ética do desconhecimento, da invenção, do outrar-se, do esquecimento. O sujeito é precário, móvel, inconsistente; mas faz dessa inconsistência mesma, como nas palavras de Celan, sua força: “sobre inconsistências apoiar-se”. Ocorre que aquilo que possibilita ao sujeito esquecer-se, outrar-se, transformar-se, a cada vez, no inusitado que se ergue à sua frente, é a escrita. Daí a saúde a toda prova dessa poética: ela é voltada para a exterioridade, para a “íntima estranheza” em que a escrita lança aquele que, por sua vez, lança-se à escrita. O elogio da escrita que atravessa todo esse livro adquire sua dimensão ética no fato de que nela, na escrita, situa-se a viabilidade de uma forma de vida.
Daí que essa gramatofilia exija de nós uma série de manobras transvalorativas. Para começar, seu imperativo ético é o justo oposto da inscrição grega no templo de Apolo, em Delfos, em sua difundida versão latina: no lugar do nosce te ipsum, “conhece-te a ti mesmo”, portanto, um desconhece-te a ti mesmo. No lugar de uma poesia ensimesmada, ruminante, uma poética ex-simesmada. Ao invés de uma auto-estima, o “admirário”, o saber manter-se em estado de espanto, perplexidade para com a vida: uma, logo, heteroestima. No lugar da intimidade, uma extimidade. A saúde, ética e semiológica, desses escritos reside, nota-se, em sua fidelidade a esse prefixo grego: eks-, aqui anteposto, implicitamente, a cada palavra, a cada arranjo: “Nenhuma intimidade que não seja com o estranhamento”. Se é verdade que os nômades são o mais sedentário dos povos, pois só se deslocam quando obrigados (por não se moverem, não plantarem, são condenados a mudar-se), os escritores, esses, podem ser os mais nômades entre os sedentários - dizem que Kant nunca saiu da pequena Königsberg -, pois deslocam-se radicalmente por via da escrita.
E a escrita, aqui, assume diversas manifestações, sempre engajadas, em profundidade, com a formulação/encenação do indistinto ou com a “íntima estranheza” dos novos arranjos. Desde a fala colhida nas ruas, com que se abre esse livro, e que depois viria a se desenvolver e radicalizar na poética trans-subjetiva de Já que não há cabeça nem lugar para o que passa, passando pelo tom meditativo do belo poema de abertura do livro Ecometria do silêncio, chegando à extraordinária série sobre o mundo do boxe, A nobre arte, trata-se de um livro cuja fatura não se repete em momento algum. Ora tende ao poético (em sentido “tradicional”), como no livro A fronteira desguarnecida, ora tende ao conceitual, como nos Escritos da indiscernibilidade - lembrando sempre que o que se apresenta como decisivo não se revela no horizonte dessas diferenças.
Passando rapidamente por cada um dos livros, o primeiro do volume, Na cidade aberta, desde a epígrafe e, sobretudo, no poema final já antecipa algumas das questões principais da poética de Pucheu: a fala, o inesperado do cotidiano, a indistinção. O livro seguinte, o já perfeitamente realizado Escritos da freqüentação, tende ao conceitual: inaugura, no interior dessa poética, o que podemos chamar de um pensamento nu, pensamento do pensamento, pensamento da essência do pensamento, no mesmo sentido em que Blanchot falava que a poesia de Char era uma poesia da essência da poesia. Depois, A fronteira desguarnecida investe em ritmos e imagens, é uma poesia fuliginosa, feita de arestas, quinas, ferro, trancos, solavancos - uma poética do engavetamento, ou, se quisermos, uma poética ungulada, aludindo ao antológico “Poema ungulado” (que aqui não transcrevo para preservar a surpresa).
Continuando, de Ecometria do silêncio poder-se-ia dizer que é um livro confessional, não fosse o eu que se “confessa” tão inconsistente a ponto de afirmar: “Nunca me reconheci em nenhuma frase, estive sempre perdido, e, hoje, só tenho essa perdição sem qualquer esperança”. Já A vida é assim é uma poética da imanência da vida, de uma vida trans-individual, impregnada na linguagem do cotidiano. Essa vida trans-subjetiva procura ser capturada, em fatura diversa, através dos arranjos (em sentido estrito: textos que Pucheu monta com frases alheias) de Já que não há cabeça nem lugar para o que passa. Em seguida, Os Escritos da indiscernibilidade conduzem-nos a pensar que a poética de Pucheu radicaliza a vocação do escritor-crítico moderno, fazendo com que a crítica não seja, nem uma atividade lateral, nem apenas o substrato de uma obra literária, mas que ganhe a superfície mesma do texto, numa escrita que não pode renunciar a, simultaneamente, pensar a si mesma. Finalmente, os inéditos em livro Escritos para o lado de dentro das lentes dos óculos e Performance para um corpo concentrado em sua voz, este último composto por duas séries, uma homônima ao título e a outra contendo poemas ficcionais sobre o mundo do boxe.
Percorrido o livro, não se pode deixar de trocar a palavra: percorreu-se uma obra. Este A fronteira desguarnecida é, seguramente, uma obra, não no sentido do significado estanque e consolidado, tampouco nas ressonâncias solenes dessa palavra, mas no sentido da homogeneidade, da obsessão, do mesmo, do corpo, do retorno das questões em espiral, do conjunto de formulações, da relevância, do contorno, do vigor e, talvez, sobretudo, da fidelidade à escrita, longe de qualquer veleidade, e sim como necessidade de sustentação de uma forma de vida: gramatofilia.
Francisco Bosco
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