APRESENTAÇÃO: ALBERTO PIMENTA

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por Alberto Pimenta

... Assim é também a poesia , que sendo a voz de todos os tempos , por fora se compõe do discurso do seu próprio tempo . Pois a experiência que a antecede ( ou que a cede ao poeta e depois a todos nós ) "acontece agora pela primeira vez ", como enuncia o título da Primeira Parte e do terceiro poema do livro , um título programa-teoria de vida e arte .

O que sucede é que costumam vida e arte associar-se bem na teoria que as une e assim define; na prática sempre uma delas tenta sacudir e inviabilizar a outra , e assim "é o expor-se ou furtar-se ao incompatível que substancialmente define uma obra de arte " ( Adorno ). Os poetas sempre souberam disso, e os maiores são-no porque souberam também como resolvê-lo: "O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."

Pois a poesia só se consuma derrotando em sua maneira intemporal , não a vida , mas a corrente de trivialidade que arrasta a esta: "Entro, com os pés descalços , na cidade aberta " (p.11), e depois , decidida e decisivamente , " construir o que , para ser habitado, tem de ser logo abandonado" (p.13). Instalar-se é ceder à meta daquela inércia que conduz direitinha à morte . A vida só se abre e desdobra quando se torna peregrinação , com as suas sacudidelas e novidades , e é isso mesmo que a poesia capta e vem pôr diante dos nossos olhos parados. Assim , o poema que segue àquele cujo final acaba de ser citado tem um título que vem do primeiro verso da Commedia de Dante: "No meio do caminho de minha vida " (p.14).

Estes títulos, estes poemas falam e esclarecem-se uns aos outros, numa enfiada luminosa; veja-se p. ex. o "Poema da constatação retornante" (p.19), que abre deste modo: "Uma máquina de carne caminha por entre carros." Verso de assinalável simplicidade e da naturalidade do requinte duma metáfora-antítese ( máquina de carne vs. carro (— máquina), com aliterações e assonâncias que, como todos os bons efeitos estilísticos, não se notam como tal, parecem a própria mão da natureza a dispor (o poeta é um fingidor, isto é, um fabricador).

Claro, por interposta consciência, também é importante não deixar que "a cultura abafe a realidade" (p.27). Cultura: aquela palavra que Geoffrey Hartman considerou das mais sexy deste nosso tempo... e, continuando nesta caracterização de Hartman, o bocadinho de medo da vida que transparece das "conversas de sala" (p.28) seria o lado pornô da cultura.

Mas toda a riqueza de alusões e a simplicidade aliada à profundidade estão logo no primeiro poema: "Vale do Socavão" (p.4). Não sei se existe no Brasil este toponímico, ou se ele foi criado por Alberto Pucheu, mas dá no mesmo: num caso seria o engenho da escolha, no outro o da descoberta. Do nome deste vale retiram-se sonoridades e sugestões anagramáticas que vão de CAVAR, VÃO, SOVA, CASO, ACASO, OCASO até OCO, e outras mais. É um memento da liquidação lenta do eu, "tornado consciente do arrepio da própria limitação e finitude" (Adorno).

O primeiro verso ("No plano da montanha ensolarada") cita e comenta com inversão o outro Vale famoso, o do Salmo 23 (Vale da sombra da morte), que Edgar Poe citou no poema "Eldorado". Ecoa ainda o plaino abandonado de "O menino da sua mãe" de Fernando Pessoa, ecoa com a naturalidade com que um pôr-do-sol ecoa outro, ou os pássaros ecoam o seu canto entre si.

Se o primeiro verso (pl a no, ensolar a do) assenta no vocalismo "a", o segundo, que introduz a iniciação, assenta na vogal que a simboliza: "i". Depois dos 40 dias de retiro de todos os que aspiram a dominar ou transfigurar a vida (Jesus Cristo ou Aleister Crowley), depois do aparecimento do símbolo desse "vôo", gaviões e não aviões, surge ao fim do nono verso um dos mais naturais e belos paradoxos que alguma vez me foi dado conhecer: "alheios a nada".

A vida é assim é um poderoso livro de poesia, dos mais poderosos que a língua portuguesa produziu nos últimos anos, e dá-me especial prazer que venha do Brasil, país que desde há pelo menos meio século está na crista da onda deste surf que começou com Homero.

 

Alberto Pimenta nasceu em 1937, no Porto, Portugal. Morou 17 anos em Heidelberg, onde estudou e ensinou línguas e literatura. Dedicou-se, primeiro, a colagens e técnicas afins. Depois, estendeu a sua atividade: poesia, happening, TV, performance falada, teatro, edição de obras raras ou tabu, poética visual e fonética. Atualmente, leciona na Universidade de Nova Lisboa. A sua poesia está traduzida em várias línguas e parte da sua obra publicada na Itália, no Brasil, na França e na Espanha. Alguns de seus livros são: Ode Pós-Moderna (Lisboa: Editora & etc , 2000), as moscas de pégaso (Lisboa: Editora & etc , 1998), Discurso sobre o filho-de-deus ao qual segue o Discurso sobre o filho-da-puta (Lisboa: Editorial Teorema 2000 - 6 a edição), Obra quase incompleta (Lisboa: Fenda Edições, 1990), entre vários outros. Algumas de suas performances se chamaram: Homo Sapiens (no zoológico de Lisboa), Conductus (em Coimbra), L'aura di Petrarca (em Roma), Uma tarefa para o ano vindouro (em Lisboa), The pig brother (em Lisboa), Conductus para 2001 (em Coimbra).

 

 

 

 

 

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